Entrevista: Edmar Ribeiro
Entrevista: Edmar Ribeiro

 

O Nexus Geopolítico tem o privilégio de receber Edmar Ribeiro, advogado formado pela PUC-Goiás e estudioso das complexas engrenagens que movem o cenário global. Desde muito jovem, Edmar dedicou-se a acompanhar as interações entre potências, os jogos diplomáticos e os conflitos que atravessam fronteiras. Sua abordagem conjuga uma sólida formação jurídica, uma sensibilidade para as dimensões humanas da geopolítica e um olhar atento às transformações de fundo que moldam a ordem internacional. Ao ser convidado a falar sobre o conflito entre Israel e Palestina, Edmar trouxe uma análise que vai além da crônica dos eventos: ele incorpora o tempo histórico, a redistribuição de poder, as relações entre atores estatais e não estatais, e os efeitos humanitários frequentemente relegados ao segundo plano. Com clareza e refinamento, ele ajuda a decifrar por que o conflito permanece tão resistente às soluções tradicionais, e quais fatores emergentes podem alterar o seu curso.

 

 

Nexus GeopolíticoEdmar, como você avalia a atual política externa dos EUA em relação a Israel?

Edmar Ribeiro: A política externa dos Estados Unidos em relação a Israel manteve sua espinha dorsal histórica, porém passou por ajustes relevantes entre 2024 e 2025 que precisam ser lidos com lupa institucional e com atenção às pressões domésticas. No fim do governo Biden houve um gesto incomum, a suspensão de um lote de bombas de 900 quilos e 227 quilos diante do risco de uma ofensiva de grande escala em Rafah, gesto que sinalizou desconforto com o custo humanitário da campanha em Gaza, embora o fluxo mais amplo de armamentos tenha seguido praticamente intacto. Esse breve travão ilustrou um limite político e jurídico invocado por Washington quando o emprego de munições pesadas em áreas densamente povoadas ameaça produzir danos desproporcionais. Ainda naquele período, a Casa Branca tentou mitigar a fome e a colapso logístico em Gaza com a instalação de um píer temporário para entrada marítima de ajuda, operação que, apesar de volumosa em cifras e esforço, teve impacto intermitente por questões de segurança e clima, sendo desativada poucos meses depois. O recado foi inequívoco, sustentar Israel como aliado central segue inegociável, porém a forma de sustentar, sobretudo quando envolve o uso de certos meios e o acesso humanitário, pode sofrer condicionantes táticas e reputacionais.
A inflexão de 2025, com a mudança de governo em Washington, recolocou a agenda em registro mais assertivo em favor de Israel. Além de desfazer a diretriz que vinculava a transferência de armas a compromissos explícitos de respeito ao direito internacional humanitário, a nova administração retomou remessas suspensas e notificou o Congresso sobre pacotes adicionais de venda de armamentos, deixando claro que os freios normativos adotados no ano anterior perderam vigor. O pano de fundo diplomático, porém, ficou mais complexo. Em paralelo ao reforço militar, a Casa Branca apresentou um plano em vinte pontos para encerrar a guerra, que abriu caminho a um cessar-fogo e a trocas de reféns e prisioneiros, ainda que sob condições frágeis e com forte disputa sobre verificação, desmilitarização e quem comporia uma força internacional de estabilização. A política americana, portanto, opera em duas trilhas que convivem em tensão, a trilha do apoio estratégico e a trilha de uma engenharia diplomática que busca costurar cessação de hostilidades e arranjos de segurança com participação árabe. Essa ambivalência reflete a leitura de que a credibilidade dos EUA na região depende tanto da garantia de superioridade militar de Israel quanto da capacidade de produzir um mecanismo de paz minimamente sustentável.
No plano jurídico e reputacional, dois vetores internacionais passaram a pressionar a moldura política americana. De um lado, o Tribunal Penal Internacional avançou com pedidos de mandados de prisão envolvendo lideranças israelenses e do Hamas, inserindo o conflito em uma arena em que aliados tradicionais precisam calibrar sua retórica e sua cooperação para não parecerem indiferentes a alegações graves de crimes de guerra. De outro lado, a Corte Internacional de Justiça emitiu e reiterou medidas provisórias no caso sobre a Convenção do Genocídio, ampliando a expectativa de que Estados com influência sobre Israel hajam para reduzir riscos à população civil e garantam fluxo de ajuda. Esses elementos não dissolvem a parceria estratégica, porém erodem a pretensão de neutralidade e impõem custos simbólicos no sistema multilateral, custos que rivais de Washington exploram com habilidade.
A frente regional também realinhou prioridades. Os esforços para integrar uma arquitetura que envolva normalização ampliada com países árabes, sobretudo um trilho que contemple a Arábia Saudita, ganharam nova moldura, agora atrelados ao cessar-fogo em Gaza e a garantias de segurança e reconstrução que exigem financiamento e governança difíceis. Think tanks e chancelerias vêm advertindo que o êxito dessa costura depende de uma diplomacia de porta giratória, capaz de manter simultaneamente a confiança de Jerusalém, de capitais árabes e de Washington, e que a execução no terreno, particularmente na transição civil e de segurança em Gaza, será o teste decisivo da nova doutrina americana. Em síntese, a política dos EUA continua ancorada no suporte robusto a Israel, mas foi obrigada pelos fatos a incorporar instrumentos de contenção humanitária e uma iniciativa de paz com múltiplas fases, cuja durabilidade exigirá concessões que nenhum dos lados concede facilmente.
Em termos de avaliação, a coerência estratégica permanece, Israel segue como o pilar do arranjo regional visto de Washington, mas a conjuntura de 2024 e 2025 expôs três limites que moldam as próximas decisões, o primeiro é o atrito político interno nos EUA entre o imperativo de apoiar um aliado e a pressão pública diante de imagens de devastação, o segundo é a crescente judicialização internacional do conflito, que afeta o espaço de manobra diplomática dos aliados, o terceiro é a necessidade de transformar um cessar-fogo precário em arquitetura de segurança e reconstrução crível, algo que depende de governança palestina viável e de garantias externas coordenadas. A política americana navega entre essas margens, procurando preservar deterrência, recompor legitimidade e evitar que a frente norte, envolvendo Hezbollah, e as ações houthis, reabram a caixa de Pandora regional. É uma estratégia de equilíbrio fino, na qual cada passo militar ou diplomático é imediatamente julgado pelo prisma humanitário, pela política doméstica e pela competição geopolítica de grandes potências.

Nexus Geopolítico: Diante da continuidade da guerra em Gaza e da mudança na Casa Branca, você acredita que Joe Biden realmente se opôs à forma como Benjamin Netanyahu conduziu o conflito, e como essa relação evolui agora sob Donald Trump?

Edmar Ribeiro: A oposição de Joe Biden à condução de Netanyahu foi mais simbólica que estrutural. Em 2024, ele ensaiou limites ao reter temporariamente bombas de grande impacto e ao anunciar o píer humanitário em Gaza, iniciativas que visavam demonstrar preocupação com o custo civil da guerra sem romper o elo estratégico que sustenta a aliança. Foram gestos calculados, mais voltados a conter pressões internas e críticas internacionais do que a impor freios efetivos à ofensiva israelense. Biden buscou equilibrar ética e geopolítica, tentando preservar a credibilidade americana como defensora da ordem internacional sem abrir mão da parceria que, desde 1967, é o pilar da presença dos Estados Unidos no Oriente Médio. Essa política de ambiguidade, porém, mostrou seus limites. Mesmo após decisões da Corte Internacional de Justiça e investigações do Tribunal Penal Internacional, a Casa Branca jamais transformou suas advertências em condicionantes reais. O compromisso com a segurança de Israel permaneceu absoluto, e as pausas táticas em armamentos não alteraram o curso da guerra.

Com a volta de Donald Trump, o eixo mudou novamente. O novo governo assumiu um tom mais assertivo e pragmaticamente pró-Israel, revertendo as condicionantes de Biden e anunciando apoio total ao plano de “reconfiguração de Gaza” proposto por Netanyahu, que inclui desmilitarização, supervisão internacional limitada e uma governança tecnocrática sem o Hamas. O discurso de Washington tornou-se de “vitória e reconstrução”, substituindo o léxico humanitário pela lógica da imposição de ordem. O resultado é que a relação EUA–Israel voltou ao seu ponto de rigidez original: os Estados Unidos continuam sendo o fiador estratégico de Israel, independentemente de divergências de método. Biden tentou civilizar a guerra; Trump tenta encerrá-la pela força e pela narrativa da restauração. Em ambos os casos, o que se mantém é a aliança como instrumento de hegemonia e o custo humanitário como variável subordinada.

Nexus Geopolítico: Após o anúncio do plano de paz de Donald Trump e a trégua subsequente entre Israel e o Hamas, quais são, em sua análise, as implicações desse apoio praticamente incondicional dos Estados Unidos a Israel, e por que o plano não convence os críticos de que uma paz genuína está em curso?

Edmar Ribeiro: O plano apresentado por Trump reafirma o papel dos Estados Unidos como fiadores estratégicos de Israel, não como mediadores de equilíbrio. Sua essência mantém a assimetria que sustenta o conflito: Israel preserva o controle das fronteiras, da segurança e da reconstrução, enquanto a governança palestina é reduzida a uma função administrativa supervisionada. Essa estrutura, ainda que travestida de pragmatismo, perpetua o desequilíbrio que impede qualquer soberania efetiva do lado palestino. A trégua que se seguiu trouxe alívio humanitário pontual, mas não alterou as bases de dominação territorial nem os parâmetros de autodeterminação, que seguem subordinados a decisões unilaterais de Tel Aviv.O impacto regional é imediato. O Irã, o Hezbollah e milícias no entorno veem o acordo como uma reafirmação da supremacia militar israelense com respaldo americano, o que tende a deslocar a disputa do campo diplomático para arenas assimétricas e de retaliação. Em contrapartida, países árabes que apoiaram a trégua o fizeram mais por cálculo econômico e pressão geopolítica do que por convicção, conscientes de que o plano oferece estabilidade tática, mas não justiça duradoura. Portanto, o apoio americano, agora reforçado sob Trump, consolida Israel como peça central de contenção e dissuasão no Oriente Médio, mas aprofunda o déficit de legitimidade dos Estados Unidos como promotores de uma paz justa. O Plano Trump não inaugura uma nova era diplomática; apenas institucionaliza, sob nova retórica, a velha lógica de controle.

Nexus Geopolítico: Considerando a trégua posterior ao Plano Trump e o novo enquadramento dado por Washington, quais são hoje as consequências políticas e materiais mais relevantes para os palestinos

Edmar Ribeiro: A trégua trouxe algum alívio imediato, porém não alterou o eixo da vida palestina, que segue marcado por controle territorial, fragmentação institucional e horizonte político encurtado. Em Gaza, a interrupção relativa das hostilidades reduziu o barulho das bombas, mas não substituiu a falta de eletricidade, água, medicamentos e reconstrução em escala. A governança proposta, apresentada como tecnocrática e transitória, não resolve o dilema central, sem autonomia real, sem calendário verificável de retirada e sem garantias de circulação de pessoas e bens, a população fica presa a uma administração de emergência que administra a escassez, não direitos. Famílias deslocadas continuam em abrigos provisórios, com acesso irregular a ajuda. Hospitais funcionam de forma intermitente. A promessa de reabertura logística depende de corredores sob controle de segurança israelense, o que transforma a assistência em instrumento de alavancagem, não em direito assegurado. Na Cisjordânia, o quadro piorou em silêncio. A expansão de assentamentos e a intensificação de incursões e confrontos aumentaram a pressão sobre cidades e vilas palestinas. Postos de controle e demolições administrativas mantêm o território em mosaico, corroendo a economia local e encurtando a mobilidade. A Autoridade Palestina segue enfraquecida, sem legitimidade para negociar o que não pode executar e sem capacidade fiscal para sustentar serviços essenciais. Isso alimenta a frustração de uma geração jovem que não enxerga mecanismos institucionais para canalizar sua reivindicação de direitos, o que desloca a política do terreno da negociação para o da resistência difusa, com riscos previsíveis de novas espirais de violência.

No plano jurídico e simbólico, o acúmulo de relatórios humanitários e medidas cautelares internacionais deu vocabulário à denúncia, porém não produziu salvaguardas efetivas no cotidiano. O resultado é um paradoxo corrosivo, cresce a documentação de violações ao mesmo tempo em que a vida prática continua submetida a controles e restrições. Esse descompasso mina a confiança em mediações e esvazia a perspectiva de um processo político robusto, pois qualquer conversa sobre reconciliação fica subordinada a questões de segurança que travam a agenda de soberania e de autodeterminação.

Para os palestinos a trégua significou pausa operacional, não mudança de regime de direitos. A arquitetura atual administra o conflito e a ajuda emergencial, mas não oferece um caminho crível para restaurar capacidade de autogoverno, garantir contiguidade territorial ou reconstruir a economia. Enquanto a condicionalidade humanitária não vier acompanhada de parâmetros políticos verificáveis, a consequência será a normalização da excepcionalidade, uma paz de manutenção que prolonga o sofrimento e adia a solução.

Nexus Geopolítico: Diante da intensificação da violência de colonos e do avanço dos assentamentos na Cisjordânia após a trégua de 2025, como você interpreta a política israelense nesse território e suas consequências humanas e políticas?

Edmar Ribeiro: A política israelense na Cisjordânia, especialmente após a trégua, revela um processo metódico de expansão territorial sustentado por uma lógica colonial moderna. O Estado de Israel utiliza o discurso da segurança como cobertura para um projeto de ocupação que avança a cada semana, transformando a geografia da região em um mosaico de fragmentos palestinos isolados e vulneráveis. Desde o início de 2025, centenas de hectares de terras agrícolas foram confiscados, vilas cercadas e estradas estratégicas passaram a ser controladas exclusivamente por colonos e forças militares. Essa ocupação não é apenas física, é simbólica, jurídica e econômica, pois mina a viabilidade de qualquer futuro Estado palestino e esvazia as noções de autonomia e soberania. A violência cotidiana tornou-se ferramenta de dissuasão. Colonos, agora armados com maior liberdade e amparados pela inércia institucional israelense, atacam plantações, invadem casas e provocam deslocamentos silenciosos. A destruição sistemática de oliveiras, símbolo vital e cultural da Palestina, expressa o caráter de longo prazo dessa política, que busca apagar a permanência palestina da paisagem e da memória. Paralelamente, a presença militar intensificada legitima um estado de exceção permanente, em que cada palestino é visto como suspeito e cada protesto é tratado como ameaça terrorista.

A política de colonização é acompanhada por um aparato legal que dá aparência de normalidade a esse processo. Autorizações retroativas de assentamentos ilegais, políticas de “zonas de segurança” e demolições administrativas são os instrumentos burocráticos de uma guerra silenciosa. As consequências são profundas: o colapso da economia local, o isolamento de comunidades e o aumento da dependência de ajuda internacional, que se torna um mecanismo de controle mais do que de socorro. O que se observa é uma colonização que se impõe não apenas pelo uso da força, mas pela erosão da esperança política. A cada novo posto militar e a cada novo assentamento, a fronteira do possível se desloca, e a ideia de paz se converte em abstração distante, uma palavra usada nas cúpulas diplomáticas, mas ausente no cotidiano das cidades e campos palestinos.

Nexus Geopolítico: Considerando essa lógica de expansão contínua que você descreve na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, seria correto afirmar que a colonização deixou de ser apenas um fenômeno territorial para se tornar uma política de Estado plenamente institucionalizada? Como esse processo se estrutura e se perpetua no tempo, tanto sob justificativas de segurança quanto sob o amparo legal e administrativo israelense?

Edmar Ribeiro: Sim, é exatamente isso. A colonização deixou de ser um projeto de ocupação territorial isolado para converter-se em um sistema de Estado, planejado e sustentado por engrenagens políticas, jurídicas e militares que se complementam. Desde 1948, Israel criou um conjunto de leis e procedimentos destinados a transformar a conquista em posse e a posse em soberania. A Lei de Propriedades dos Ausentes e outras normas correlatas legalizaram o confisco de terras palestinas, enquanto uma política de assentamentos baseada em segurança nacional deu aparência de necessidade estratégica ao que, na essência, é expansão demográfica e ideológica. Após 1967, a ocupação da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental inseriu o colonato dentro da lógica de defesa, o que lhe conferiu um verniz de legitimidade militar.

O Plano Allon e o apoio posterior a grupos como o Gush Emunim nos anos 1970 mostraram que o Estado não apenas tolerava, mas incentivava a presença de colonos em áreas palestinas, convertendo a fé e o nacionalismo em instrumentos de política territorial. Estradas exclusivas, zonas militares e redes de infraestrutura destinadas aos colonos reforçaram a separação física e simbólica entre as populações.

Os Acordos de Oslo, em vez de romper essa dinâmica, a consolidaram sob um modelo administrativo complexo. A fragmentação da Cisjordânia em Áreas A, B e C deu à Autoridade Palestina uma autonomia aparente, enquanto Israel manteve o controle sobre as terras e os recursos vitais. A burocracia tornou-se a nova face da colonização. As demolições administrativas, a revogação de residências em Jerusalém Oriental e a regularização retroativa de outposts ilegais passaram a ser mecanismos silenciosos, porém devastadores, de reconfiguração territorial.

No presente, a máquina estatal israelense opera a colonização como uma política pública contínua. Cada assentamento novo é planejado com respaldo jurídico e cobertura militar, enquanto o discurso da segurança serve de pretexto para consolidar fatos consumados no terreno. O poder civil e o militar se fundem, a justiça chancela, e a diplomacia protege. O resultado é um regime que transforma o tempo em arma: um processo lento, burocrático e irreversível, no qual o cotidiano se converte em instrumento de dominação e o mapa se altera sem precisar de novas guerras.

Nexus Geopolítico: Qual é hoje o impacto das políticas de assentamentos de Israel na relação com os Estados Unidos, considerando a volta de Donald Trump e os desenvolvimentos mais recentes no terreno?

Edmar Ribeiro: O efeito é duplo, estratégico e moral, e ambos caminham em sentidos que corroem a posição americana. No plano estratégico, a expansão acelerada de assentamentos e a regularização de outposts na Cisjordânia após as pausas táticas em Gaza consolidam um fato consumado que inviabiliza contiguidade territorial palestina. A atual Casa Branca substituiu a linguagem dissuasória por sinais permissivos, reabilitou a doutrina segundo a qual os assentamentos não seriam, por si, ilegais, reduziu custo diplomático para ampliações e enquadrou a “estabilização” como prioridade superior à reversão de anexações de fato. Isso alivia pressões sobre o governo israelense, porém transfere para Washington o ônus de sustentar um status quo que tensiona parceiros árabes, complica a cooperação de segurança regional e alimenta narrativas antiamericanas que fortalecem Teerã e seus aliados.

No plano moral e jurídico, a política de assentamentos empurra os Estados Unidos para um terreno escorregadio. Quanto mais o mapa se redesenha por estradas segregadas, demolições administrativas e revogações de residência em Jerusalém Oriental, mais evidente fica a contradição entre a retórica americana de direitos humanos e o apoio material ao ocupante. Isso fragiliza a autoridade de Washington em fóruns internacionais, encurrala sua diplomacia quando cortes e comissões intensificam escrutínio sobre a ocupação e expõe a política externa a questionamentos internos com base nas próprias leis americanas de exportação de armamentos e condicionalidades. A fissura doméstica alarga-se, com pressão de universidades, cidades e investidores por desengajamento de cadeias ligadas à colonização, o que reduz a margem de manobra do Executivo e torna cada pacote de ajuda objeto de disputa pública.

Na relação bilateral imediata, a simetria política cresce, mas a capacidade de mediação encolhe. Ao privilegiar normalização regional sem contrapartidas territoriais, Washington perde instrumentos para moderar a coalizão pró-assentamentos em Israel e herda os custos de segurança de um tabuleiro mais inflamável no norte e no Mar Vermelho. Assim, a expansão de assentamentos sob a atmosfera política atual estreita o espaço de diplomacia americana, agrava a fricção com aliados e converte a aliança com Israel de ativo estratégico em passivo reputacional, com efeitos cumulativos sobre a influência dos Estados Unidos no Oriente Médio.

Nexus Geopolítico: Após os eventos mais recentes entre Israel e Irã, especialmente diante do revés militar sofrido por Tel Aviv, existe hoje um risco real de o conflito se expandir para uma guerra mais ampla, com impacto regional e global?

Edmar Ribeiro: O risco não é apenas real, é estrutural. O confronto direto entre Israel e Irã, que durante anos permaneceu restrito a ataques cibernéticos, sabotagens e operações indiretas em territórios de terceiros, atingiu um novo patamar após a resposta iraniana de 2025. Pela primeira vez, Teerã respondeu de forma coordenada e aberta a ataques israelenses contra seu território e suas instalações estratégicas. O revés israelense foi operacionais e importantes: sistemas de defesa aérea antes considerados impenetráveis, como o Domo de Ferro e o sistema Arrow, foram saturados por uma combinação de drones, mísseis balísticos e de cruzeiro. O impacto foi duplo. Internamente, Israel experimentou uma vulnerabilidade inédita, com alvos militares e infraestruturas energéticas atingidos. A população civil, acostumada à superioridade tecnológica e à segurança das defesas, vivenciou pela primeira vez o medo prolongado de ataques em massa. Externamente, o episódio desestabilizou o cálculo estratégico dos Estados Unidos, que se viram obrigados a intervir militarmente e diplomaticamente para conter uma escalada que poderia arrastar todo o Golfo Pérsico. O Irã, por sua vez, emergiu fortalecido do ponto de vista simbólico e geopolítico: demonstrou capacidade de resposta, resiliência tecnológica e coordenação regional, projetando poder além de suas fronteiras.

A guerra de Gaza, que parecia localizada, tornou-se o estopim de um rearranjo estratégico mais amplo. O Hezbollah, no norte, intensificou ações de pressão; milícias xiitas no Iraque e na Síria multiplicaram ataques contra bases ligadas aos EUA; e no Mar Vermelho, os houthis do Iêmen ampliaram o bloqueio de navios ligados a interesses israelenses. O conflito, antes mediado por intermediários, passou a exibir uma geometria de confrontos simultâneos.

A percepção internacional, inclusive entre aliados ocidentais, é de que Israel perdeu parte de sua capacidade de dissuasão. O Irã, por outro lado, obteve ganhos diplomáticos no eixo euro-asiático: Rússia e China reforçaram sua parceria estratégica com Teerã, vendo na crise uma oportunidade de desafiar o sistema de segurança liderado pelos Estados Unidos e, neste contexto, o Oriente Médio vive um equilíbrio instável, em que qualquer erro de cálculo pode detonar uma guerra aberta. Uma nova ofensiva israelense em larga escala contra o Irã, poderá provocar retaliações múltiplas, capazes de interromper rotas de energia, paralisar cadeias logísticas globais e elevar a instabilidade financeira mundial.

O episódio recente não apenas redefiniu a correlação de forças, mas revelou algo mais profundo: a era da invulnerabilidade israelense chegou ao fim. O tempo agora trabalha a favor de uma nova configuração multipolar no Oriente Médio, na qual a superioridade tecnológica já não garante hegemonia, e o poder se mede pela capacidade de resistir, adaptar e projetar influência num tabuleiro em constante transformação.

Nexus Geopolítico: A opinião pública americana está realmente se deslocando em relação a Israel, e como esse movimento recente influencia os limites da política externa de Washington sob a atual administração Trump e seu novo plano de paz?

Edmar Ribeiro: O deslocamento da opinião pública americana é visível, ainda que o governo Trump finja não percebê-lo. Desde a apresentação do novo plano de paz de 2025, apresentado como “Acordo do Século Renovado”, o abismo entre o discurso oficial e o sentimento popular se aprofundou. O plano, vendido como tentativa de estabilização e reconstrução, nada mais é do que a continuidade refinada de uma política de subjugação. Repito, ele condiciona a ajuda humanitária à aceitação de corredores sob supervisão israelense, ignora os crimes de guerra cometidos em Gaza e transforma a promessa de paz em instrumento de controle político e territorial. É uma paz tutelada, desenhada não para resolver o conflito, mas para institucionalizar a derrota palestina com verniz diplomático. Sob Trump, a linguagem da diplomacia americana abandonou qualquer vestígio de equilíbrio. O governo trata Israel não como aliado, mas como extensão de sua própria narrativa imperial. A retórica da “reconstrução segura” é, na prática, a legitimação da ocupação e da anexação gradual da Cisjordânia. Washington tornou-se o centro de difusão de uma visão teológica e geopolítica em que o expansionismo israelense é visto como cumprimento de uma promessa civilizatória. Não há mais tentativa de mediação, apenas a imposição do vencedor. 

No entanto, fora das estruturas de poder, a maré muda. A juventude americana,  está mais cética e menos refém do moralismo religioso e passou a enxergar Gaza como símbolo do colapso ético da política externa dos EUA. As manifestações em universidades, os protestos diante de sedes corporativas e o boicote a empresas que financiam o complexo militar israelense revelam uma mudança de fundo: a perda da inocência política. Pela primeira vez, uma parcela significativa da sociedade questiona não apenas o que Israel faz, mas o que os Estados Unidos permitem e financiam. Trump, contudo, converte essa indignação em combustível político. Ele alimenta sua base com a retórica da força, da proteção divina e do enfrentamento contra um inimigo fabricado. Seu plano de paz é, em essência, um manifesto ideológico travestido de diplomacia, um texto que substitui direitos humanos por geopolítica e esperança por dominação. O império americano, que se acostumou a definir o mundo em termos de aliados e inimigos, agora enfrenta um dilema interno: a guerra de Gaza não é apenas uma tragédia distante, é o espelho moral da América diante do próprio declínio. Em última instância, a política externa dos Estados Unidos tornou-se refém da mesma lógica que diz combater: a lógica da força sobre o direito. O plano de paz de Trump não pacifica, apenas adia a próxima explosão. E a ruína em Gaza se transforma em monumento à hipocrisia de um império que perdeu a capacidade de distinguir liderança de dominação.