O Nexus Geopolítico tem o privilégio de receber Edmar Ribeiro, advogado formado pela PUC-Goiás e estudioso das complexas engrenagens que movem o cenário global. Desde muito jovem, Edmar dedicou-se a acompanhar as interações entre potências, os jogos diplomáticos e os conflitos que atravessam fronteiras. Sua abordagem conjuga uma sólida formação jurídica, uma sensibilidade para as dimensões humanas da geopolítica e um olhar atento às transformações de fundo que moldam a ordem internacional. Ao ser convidado a falar sobre o conflito entre Israel e Palestina, Edmar trouxe uma análise que vai além da crônica dos eventos: ele incorpora o tempo histórico, a redistribuição de poder, as relações entre atores estatais e não estatais, e os efeitos humanitários frequentemente relegados ao segundo plano. Com clareza e refinamento, ele ajuda a decifrar por que o conflito permanece tão resistente às soluções tradicionais, e quais fatores emergentes podem alterar o seu curso.
Nexus Geopolítico: Edmar, como você avalia a atual política externa dos EUA em relação a Israel?
Edmar Ribeiro: A política externa dos Estados Unidos em relação a Israel manteve sua espinha dorsal histórica, porém passou por ajustes relevantes entre 2024 e 2025 que precisam ser lidos com lupa institucional e com atenção às pressões domésticas. No fim do governo Biden houve um gesto incomum, a suspensão de um lote de bombas de 900 quilos e 227 quilos diante do risco de uma ofensiva de grande escala em Rafah, gesto que sinalizou desconforto com o custo humanitário da campanha em Gaza, embora o fluxo mais amplo de armamentos tenha seguido praticamente intacto. Esse breve travão ilustrou um limite político e jurídico invocado por Washington quando o emprego de munições pesadas em áreas densamente povoadas ameaça produzir danos desproporcionais. Ainda naquele período, a Casa Branca tentou mitigar a fome e a colapso logístico em Gaza com a instalação de um píer temporário para entrada marítima de ajuda, operação que, apesar de volumosa em cifras e esforço, teve impacto intermitente por questões de segurança e clima, sendo desativada poucos meses depois. O recado foi inequívoco, sustentar Israel como aliado central segue inegociável, porém a forma de sustentar, sobretudo quando envolve o uso de certos meios e o acesso humanitário, pode sofrer condicionantes táticas e reputacionais.
A inflexão de 2025, com a mudança de governo em Washington, recolocou a agenda em registro mais assertivo em favor de Israel. Além de desfazer a diretriz que vinculava a transferência de armas a compromissos explícitos de respeito ao direito internacional humanitário, a nova administração retomou remessas suspensas e notificou o Congresso sobre pacotes adicionais de venda de armamentos, deixando claro que os freios normativos adotados no ano anterior perderam vigor. O pano de fundo diplomático, porém, ficou mais complexo. Em paralelo ao reforço militar, a Casa Branca apresentou um plano em vinte pontos para encerrar a guerra, que abriu caminho a um cessar-fogo e a trocas de reféns e prisioneiros, ainda que sob condições frágeis e com forte disputa sobre verificação, desmilitarização e quem comporia uma força internacional de estabilização. A política americana, portanto, opera em duas trilhas que convivem em tensão, a trilha do apoio estratégico e a trilha de uma engenharia diplomática que busca costurar cessação de hostilidades e arranjos de segurança com participação árabe. Essa ambivalência reflete a leitura de que a credibilidade dos EUA na região depende tanto da garantia de superioridade militar de Israel quanto da capacidade de produzir um mecanismo de paz minimamente sustentável.
No plano jurídico e reputacional, dois vetores internacionais passaram a pressionar a moldura política americana. De um lado, o Tribunal Penal Internacional avançou com pedidos de mandados de prisão envolvendo lideranças israelenses e do Hamas, inserindo o conflito em uma arena em que aliados tradicionais precisam calibrar sua retórica e sua cooperação para não parecerem indiferentes a alegações graves de crimes de guerra. De outro lado, a Corte Internacional de Justiça emitiu e reiterou medidas provisórias no caso sobre a Convenção do Genocídio, ampliando a expectativa de que Estados com influência sobre Israel hajam para reduzir riscos à população civil e garantam fluxo de ajuda. Esses elementos não dissolvem a parceria estratégica, porém erodem a pretensão de neutralidade e impõem custos simbólicos no sistema multilateral, custos que rivais de Washington exploram com habilidade.
A frente regional também realinhou prioridades. Os esforços para integrar uma arquitetura que envolva normalização ampliada com países árabes, sobretudo um trilho que contemple a Arábia Saudita, ganharam nova moldura, agora atrelados ao cessar-fogo em Gaza e a garantias de segurança e reconstrução que exigem financiamento e governança difíceis. Think tanks e chancelerias vêm advertindo que o êxito dessa costura depende de uma diplomacia de porta giratória, capaz de manter simultaneamente a confiança de Jerusalém, de capitais árabes e de Washington, e que a execução no terreno, particularmente na transição civil e de segurança em Gaza, será o teste decisivo da nova doutrina americana. Em síntese, a política dos EUA continua ancorada no suporte robusto a Israel, mas foi obrigada pelos fatos a incorporar instrumentos de contenção humanitária e uma iniciativa de paz com múltiplas fases, cuja durabilidade exigirá concessões que nenhum dos lados concede facilmente.
Em termos de avaliação, a coerência estratégica permanece, Israel segue como o pilar do arranjo regional visto de Washington, mas a conjuntura de 2024 e 2025 expôs três limites que moldam as próximas decisões, o primeiro é o atrito político interno nos EUA entre o imperativo de apoiar um aliado e a pressão pública diante de imagens de devastação, o segundo é a crescente judicialização internacional do conflito, que afeta o espaço de manobra diplomática dos aliados, o terceiro é a necessidade de transformar um cessar-fogo precário em arquitetura de segurança e reconstrução crível, algo que depende de governança palestina viável e de garantias externas coordenadas. A política americana navega entre essas margens, procurando preservar deterrência, recompor legitimidade e evitar que a frente norte, envolvendo Hezbollah, e as ações houthis, reabram a caixa de Pandora regional. É uma estratégia de equilíbrio fino, na qual cada passo militar ou diplomático é imediatamente julgado pelo prisma humanitário, pela política doméstica e pela competição geopolítica de grandes potências.
Nexus Geopolítico: Diante da continuidade da guerra em Gaza e da mudança na Casa Branca, você acredita que Joe Biden realmente se opôs à forma como Benjamin Netanyahu conduziu o conflito, e como essa relação evolui agora sob Donald Trump?
Edmar Ribeiro: A oposição de Joe Biden à condução de Netanyahu foi mais simbólica que estrutural. Em 2024, ele ensaiou limites ao reter temporariamente bombas de grande impacto e ao anunciar o píer humanitário em Gaza, iniciativas que visavam demonstrar preocupação com o custo civil da guerra sem romper o elo estratégico que sustenta a aliança. Foram gestos calculados, mais voltados a conter pressões internas e críticas internacionais do que a impor freios efetivos à ofensiva israelense. Biden buscou equilibrar ética e geopolítica, tentando preservar a credibilidade americana como defensora da ordem internacional sem abrir mão da parceria que, desde 1967, é o pilar da presença dos Estados Unidos no Oriente Médio. Essa política de ambiguidade, porém, mostrou seus limites. Mesmo após decisões da Corte Internacional de Justiça e investigações do Tribunal Penal Internacional, a Casa Branca jamais transformou suas advertências em condicionantes reais. O compromisso com a segurança de Israel permaneceu absoluto, e as pausas táticas em armamentos não alteraram o curso da guerra.
Com a volta de Donald Trump, o eixo mudou novamente. O novo governo assumiu um tom mais assertivo e pragmaticamente pró-Israel, revertendo as condicionantes de Biden e anunciando apoio total ao plano de “reconfiguração de Gaza” proposto por Netanyahu, que inclui desmilitarização, supervisão internacional limitada e uma governança tecnocrática sem o Hamas. O discurso de Washington tornou-se de “vitória e reconstrução”, substituindo o léxico humanitário pela lógica da imposição de ordem. O resultado é que a relação EUA–Israel voltou ao seu ponto de rigidez original: os Estados Unidos continuam sendo o fiador estratégico de Israel, independentemente de divergências de método. Biden tentou civilizar a guerra; Trump tenta encerrá-la pela força e pela narrativa da restauração. Em ambos os casos, o que se mantém é a aliança como instrumento de hegemonia e o custo humanitário como variável subordinada.
Nexus Geopolítico: Após o anúncio do plano de paz de Donald Trump e a trégua subsequente entre Israel e o Hamas, quais são, em sua análise, as implicações desse apoio praticamente incondicional dos Estados Unidos a Israel, e por que o plano não convence os críticos de que uma paz genuína está em curso?
Edmar Ribeiro: O plano apresentado por Trump reafirma o papel dos Estados Unidos como fiadores estratégicos de Israel, não como mediadores de equilíbrio. Sua essência mantém a assimetria que sustenta o conflito: Israel preserva o controle das fronteiras, da segurança e da reconstrução, enquanto a governança palestina é reduzida a uma função administrativa supervisionada. Essa estrutura, ainda que travestida de pragmatismo, perpetua o desequilíbrio que impede qualquer soberania efetiva do lado palestino. A trégua que se seguiu trouxe alívio humanitário pontual, mas não alterou as bases de dominação territorial nem os parâmetros de autodeterminação, que seguem subordinados a decisões unilaterais de Tel Aviv.O impacto regional é imediato. O Irã, o Hezbollah e milícias no entorno veem o acordo como uma reafirmação da supremacia militar israelense com respaldo americano, o que tende a deslocar a disputa do campo diplomático para arenas assimétricas e de retaliação. Em contrapartida, países árabes que apoiaram a trégua o fizeram mais por cálculo econômico e pressão geopolítica do que por convicção, conscientes de que o plano oferece estabilidade tática, mas não justiça duradoura. Portanto, o apoio americano, agora reforçado sob Trump, consolida Israel como peça central de contenção e dissuasão no Oriente Médio, mas aprofunda o déficit de legitimidade dos Estados Unidos como promotores de uma paz justa. O Plano Trump não inaugura uma nova era diplomática; apenas institucionaliza, sob nova retórica, a velha lógica de controle.
Nexus Geopolítico: Considerando a trégua posterior ao Plano Trump e o novo enquadramento dado por Washington, quais são hoje as consequências políticas e materiais mais relevantes para os palestinos
Edmar Ribeiro: A trégua trouxe algum alívio imediato, porém não alterou o eixo da vida palestina, que segue marcado por controle territorial, fragmentação institucional e horizonte político encurtado. Em Gaza, a interrupção relativa das hostilidades reduziu o barulho das bombas, mas não substituiu a falta de eletricidade, água, medicamentos e reconstrução em escala. A governança proposta, apresentada como tecnocrática e transitória, não resolve o dilema central, sem autonomia real, sem calendário verificável de retirada e sem garantias de circulação de pessoas e bens, a população fica presa a uma administração de emergência que administra a escassez, não direitos. Famílias deslocadas continuam em abrigos provisórios, com acesso irregular a ajuda. Hospitais funcionam de forma intermitente. A promessa de reabertura logística depende de corredores sob controle de segurança israelense, o que transforma a assistência em instrumento de alavancagem, não em direito assegurado. Na Cisjordânia, o quadro piorou em silêncio. A expansão de assentamentos e a intensificação de incursões e confrontos aumentaram a pressão sobre cidades e vilas palestinas. Postos de controle e demolições administrativas mantêm o território em mosaico, corroendo a economia local e encurtando a mobilidade. A Autoridade Palestina segue enfraquecida, sem legitimidade para negociar o que não pode executar e sem capacidade fiscal para sustentar serviços essenciais. Isso alimenta a frustração de uma geração jovem que não enxerga mecanismos institucionais para canalizar sua reivindicação de direitos, o que desloca a política do terreno da negociação para o da resistência difusa, com riscos previsíveis de novas espirais de violência.
No plano jurídico e simbólico, o acúmulo de relatórios humanitários e medidas cautelares internacionais deu vocabulário à denúncia, porém não produziu salvaguardas efetivas no cotidiano. O resultado é um paradoxo corrosivo, cresce a documentação de violações ao mesmo tempo em que a vida prática continua submetida a controles e restrições. Esse descompasso mina a confiança em mediações e esvazia a perspectiva de um processo político robusto, pois qualquer conversa sobre reconciliação fica subordinada a questões de segurança que travam a agenda de soberania e de autodeterminação.
Para os palestinos a trégua significou pausa operacional, não mudança de regime de direitos. A arquitetura atual administra o conflito e a ajuda emergencial, mas não oferece um caminho crível para restaurar capacidade de autogoverno, garantir contiguidade territorial ou reconstruir a economia. Enquanto a condicionalidade humanitária não vier acompanhada de parâmetros políticos verificáveis, a consequência será a normalização da excepcionalidade, uma paz de manutenção que prolonga o sofrimento e adia a solução.


