Entrevista: Ilan Pappé
Entrevista: Ilan Pappé

Do Estado de Israel ao Estado da Judeia: Ilan Pappé e o Colapso Moral de um Projeto Colonial

 

 

Nesta entrevista exclusiva ao Nexus Geopolítico, o historiador israelense Ilan Pappé disseca o processo histórico que levou da fundação do Estado de Israel, ancorado em uma limpeza étnica em 1948, à consolidação do que ele denomina estado da Judeia, uma estrutura teocrática e expansionista forjada nos assentamentos da Cisjordânia após 1967, hoje entranhada nas instituições políticas, militares e de segurança de Israel, e responsável direta pela violência extrema em Gaza e pelo aprofundamento de um regime de apartheid sobre o povo palestino; ao longo da conversa, Pappé relaciona sionismo, messianismo religioso, papel dos mizrahim, apoio da direita cristã estadunidense, economia da vigilância, alianças com regimes autoritários, erosão moral da sociedade israelense, emergência de uma opinião pública global pró Palestina, limites da solução de dois Estados, perspectivas de um Estado único democrático e implicações geopolíticas da transição para um mundo multipolar, mostrando por que, em sua leitura, a luta palestina se tornou um espelho incômodo da crise de valores do sistema internacional contemporâneo.

Ilan Pappé nasceu em Haifa, filho de judeus judeo alemães que escaparam da perseguição nazista e encontraram refúgio na Palestina ainda sob Mandato Britânico. Cresceu em uma sociedade que se apresentava a si mesma como um projeto de redenção nacional judaica, mas em um território onde outro povo já vivia, com sua própria memória, língua e raízes. Desde muito cedo experimentou a fricção entre a narrativa oficial que aprendia na escola, que falava de uma terra vazia que precisava ser redimida pelo sionismo, e as histórias dos palestinos que conhecia ao redor, cujas lembranças de expulsão e perda não apareciam nos livros didáticos. Essa fissura entre o que o Estado dizia e o que a realidade mostrava foi se tornando o eixo intelectual de sua vida. Estudou na Universidade Hebraica de Jerusalém e depois fez doutorado em Oxford, onde mergulhou nos arquivos e na documentação militar de 1948, encontrando ali evidências claras de um processo planejado de expulsão em larga escala que a narrativa oficial insistia em negar.

Ao lado de outros chamados novos historiadores israelenses, Pappé deu um passo além. Enquanto alguns se limitavam a corrigir datas ou revisar aspectos parciais da história de Israel, ele decidiu enfrentar o núcleo mítico do discurso sionista, afirmando que a Nakba não foi um acidente da guerra, mas uma limpeza étnica sistemática. Sua obra A Limpeza Étnica da Palestina se tornou um marco por mostrar de forma detalhada como vilarejos palestinos foram esvaziados, destruídos e apagados dos mapas para que o novo Estado pudesse nascer com maioria judaica. Em Dez Mitos sobre Israel ele desmonta um a um os pilares ideológicos que justificam a ocupação e a desigualdade estrutural. Em Out of the Frame ele narra também sua própria trajetória de ruptura, a passagem de alguém formado no núcleo da academia israelense para uma posição de dissidente que se recusa a legitimar o regime. Ao lado de Noam Chomsky organizou On Palestine, aprofundando as conexões entre história, política e responsabilidade internacional.

Perseguido em Israel por sua crítica frontal ao sionismo e por seu apoio ao boicote acadêmico e cultural ao Estado, Pappé deixou o país e passou a lecionar na Universidade de Exeter, no Reino Unido, onde dirige o Centro Europeu de Estudos Palestinos. De lá, tornou-se uma das vozes mais escutadas quando se trata de compreender não apenas o passado de 1948 e 1967, mas também o presente de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém, bem como o futuro de um Estado que, em sua leitura, caminha para uma crise estrutural de desintegração. Sua importância não reside apenas na coragem de nomear a realidade como colonialismo e apartheid, mas na capacidade de conectar arquivos, depoimentos e experiências vividas em uma narrativa coerente que explica como um projeto nacional, construído como resposta à perseguição antissemita, acabou se transformando em máquina sistemática de opressão de outro povo.

Nos últimos anos, à medida que a colonização da Cisjordânia se consolidou e o regime israelense incorporou abertamente forças messiânicas e racistas, o pensamento de Ilan Pappé tornou-se referência obrigatória para entender o que ele chama de transição do Estado de Israel para o estado da Judeia. Para ele, esse estado da Judeia não é um acidente, mas a forma final e desnudada de uma lógica que sempre esteve presente no sionismo, embora por muito tempo disfarçada atrás de uma fachada liberal. É com essa perspectiva que o Nexus Geopolítico conversa agora com um historiador que não fala apenas dos arquivos, mas da crise moral e política de um tempo em que a violência sobre Gaza, a expansão dos assentamentos e a retórica de guerra permanente revelam o esgotamento de um modelo histórico.

Nexus Geopolítico: Vamos começar pelo conceito do chamado estado da Judeia. O que ele significa e como se diferencia do Estado de Israel que foi formalmente proclamado em 1948?

Ilan Pappé: Quando falo em estado da Judeia, não me refiro ainda a um Estado formalmente reconhecido, com bandeira própria e assento na ONU, mas a uma estrutura de poder que foi se consolidando dentro e ao lado do Estado de Israel até começar a engoli lo por dentro. Essa estrutura nasceu nos assentamentos judaicos na Cisjordânia após a ocupação de 1967. À primeira vista, esses assentamentos puderam ser apresentados ao mundo como comunidades de segurança, cinturões defensivos, projetos habitacionais ou expressões de uma religiosidade particular. Mas na realidade eles foram laboratórios ideológicos onde se ensaiou um modelo teocrático e abertamente expansionista. O Estado de Israel, tal como foi instituído em 1948, embora já fosse um produto de um processo de limpeza étnica, preservava para consumo externo uma linguagem liberal, falava em democracia, direitos civis internos e até mesmo em negociações com os palestinos. O estado da Judeia abandona essa máscara. Ele assume como finalidade explícita a soberania judaica sobre toda a Palestina histórica, compreendida como terra bíblica indivisível, e a transformação do regime em algo que se aproxima de uma teocracia etnonacional, onde rabinos, colonos armados e políticos messiânicos passam a ditar os termos da vida política. A eleição de 1977, com a ascensão do Likud, foi o ponto de inflexão que tirou esses grupos da marginalidade. A partir de 2022, com Netanyahu dependente deles para sobreviver, vemos esse estado da Judeia convertendo seu poder informal em comando efetivo sobre ministérios da Segurança Nacional, Finanças, partes da Defesa, polícia, exército e serviços secretos, de modo que o antigo Israel republicano se torna casca institucional habitada por uma nova soberania.

Nexus Geopolítico: Esses grupos ganharam força sobretudo entre judeus mizrahim, descendentes de comunidades do Marrocos, Tunísia e outras regiões árabes. Por que essa adesão e que história social está por trás dessa virada?

Ilan Pappé: A adesão dos mizrahim a esse projeto não pode ser lida em chave simplista, como se fosse apenas um surto de conservadorismo religioso ou de ódio espontâneo aos árabes. A história é mais trágica e mais estruturada. Após 1948 e especialmente nos anos 1950, a liderança sionista percebeu que não conseguiria atrair judeus em massa dos Estados Unidos, do Reino Unido ou da Europa Ocidental. Voltou se então para os judeus árabes, que viviam em países como Iraque, Iêmen, Marrocos e Egito, muitas vezes em comunidades milenares. Quando chegaram a Israel, não foram recebidos como parte de um mosaico multicultural, mas como matéria prima que precisava ser desarabizada, isto é, separada de sua língua, de seus costumes, de sua música e de sua proximidade histórica e afetiva com o mundo árabe. Foram enviados para periferias geográficas, cidades com pouca infraestrutura, campos de trânsito. Nesses espaços, sofreram discriminação dos ashkenazim que dominavam o Estado e que viam neles um tipo de alteridade interna. A ascensão social lhes era oferecida sob a condição de que demonstrassem hostilidade aos árabes, inclusive apagando sua própria origem árabe judaica. Essa combinação de humilhação social, marginalização econômica, destruição cultural e ausência de políticas de bem estar abriu espaço para que partidos e movimentos religiosos nacionalistas se apresentassem como defensores desses grupos, oferecendo identidade, orgulho e uma narrativa segundo a qual eles seriam os guardiões autênticos da alma judaica contra a arrogância das elites seculares. É nessa trama que o estado da Judeia encontra seu principal reservatório social, não apenas nos mizrahim enquanto origem, mas numa juventude educada em escolas nacional religiosas onde se aprende que a única forma de dignidade é pela afirmação violenta sobre palestinos e até sobre judeus seculares vistos como traidores.

Nexus Geopolítico: Assim como a direita cristã nos Estados Unidos lê a política por lentes apocalípticas, esses grupos israelenses desenvolvem projetos relativos ao Monte do Templo, à destruição das mesquitas e à construção de um Terceiro Templo. Como essa visão opera na prática?

Ilan Pappé: Em Jerusalém, particularmente nas proximidades do Muro das Lamentações, existem institutos que se apresentam como centros de pesquisa acadêmica e que na verdade são laboratórios teológicos para projetar o Terceiro Templo. Eles produzem plantas arquitetônicas, maquetes, rituais, estudam os vestes sacerdotais, redigem manuais para um futuro culto sacrificial, tudo isso como se fosse um exercício teórico, quando na verdade se trata de um programa político. A ideia de derrubar as mesquitas de Al Aqsa e da Cúpula da Rocha não é uma fantasia marginal, mas está disseminada nos círculos da extrema direita religiosa que hoje orbitam o poder. Esses grupos se alimentam de uma cartografia imaginária em que a terra de Israel não se limita à Palestina histórica, mas inclui partes da Jordânia, da Síria e do Líbano, o que se conecta com operações militares e tentativas de projeção de poder nos países vizinhos. O que o mundo muitas vezes não percebe é a diferença entre o discurso em hebraico e o discurso em inglês. Internamente, eles falam de um mandato divino para reconstruir o reino de Davi e Salomão, para purificar Jerusalém e para submeter populações consideradas intrusas ou secundárias. Externamente, esse projeto é embrulhado em linguagem de segurança, luta contra o terrorismo ou defesa da liberdade de culto. Quando analisamos os textos originais, os sermões de rabinos influentes, as resoluções das organizações de colonos, fica claro que o estado da Judeia se enxerga como núcleo de um império regional com Jerusalém como centro gravitacional, governando vizinhos por meio de vassalos, aliados e punições periódicas.

Nexus Geopolítico: O senhor costuma relacionar o estado da Judeia às origens do próprio sionismo e à limpeza étnica de 1948. Em que medida esse novo estágio está ligado ao momento fundacional que o senhor descreveu em A Limpeza Étnica da Palestina?

Ilan Pappé: O estado da Judeia não é um desvio, é uma consequência lógica. Em 1948, as lideranças sionistas tomaram uma decisão estratégica que consiste em expulsar o maior número possível de palestinos das áreas designadas ao novo Estado, destruir vilarejos, impedir o retorno, apagar nomes e histórias. Essa limpeza étnica foi o pecado original do projeto e determinou que o Estado só poderia existir se mantivesse e aprofundasse esse desequilíbrio demográfico e territorial. Ao longo das décadas seguintes, os governos israelenses oscilaram entre fases de expansão agressiva e momentos de discurso mais moderado, mas sempre preservaram o axioma de que o país deveria ser simultaneamente judaico e democrático, fórmula que na prática significa democracia para os judeus e controle colonial sobre os palestinos. O estado da Judeia representa a etapa em que essa contradição se torna ingovernável. As forças messiânicas e coloniais que estiveram no coração do sionismo deixam de aceitar o jogo de disfarces e se impõem como hegemonia. Elas retomam, com menos pudor, a lógica de 1948, dizendo abertamente que a presença palestina é um problema existencial e que a soberania plena exige ou expulsão ou confinamento permanente dessa população. É como se o sionismo liberal tivesse sido uma fase tática, uma pausa, e agora o projeto voltasse à sua forma nua.

Nexus Geopolítico: Gaza, em sua leitura, se torna uma espécie de laboratório dessa lógica extrema. Como o genocídio em Gaza se insere no projeto do estado da Judeia?

Ilan Pappé: Gaza concentrou, em um pequeno território cercado, tudo aquilo que o estado da Judeia deseja fazer, mas nem sempre consegue executar em outros espaços. Ao longo dos anos, o enclave foi submetido a bloqueios, bombardeios, controle de água, energia, alimentos, circulação. Quando se observa a retórica de ministros ligados aos colonos, especialmente após 2023, é possível ver a desumanização completa dos habitantes de Gaza. Falam de animais humanos, de necessidade de devastar, de apagar bairros inteiros. Essa linguagem revela que Gaza é percebida não como cidade, mas como obstáculo a ser removido. Ao mesmo tempo, a experiência de bombardear densamente uma população aprisionada, testando armas, drones, algoritmos de identificação de alvos e métodos de destruição urbana, insere Gaza em um circuito global de militarização, pois essas tecnologias e doutrinas são depois vendidas para outros Estados. O genocídio em Gaza não é um excesso, é o ponto em que o projeto se mostra sem verniz. É o estado da Judeia operando sem filtros, com apoio de uma base social que internalizou a ideia de que o extermínio ou expulsão de parte de um povo é aceitável se for rotulado como autodefesa.

Nexus Geopolítico: O papel dos Estados Unidos é central nesse processo. Como o senhor enxerga a relação entre o estado da Judeia e a política norte americana, inclusive com a influência da direita cristã?

Ilan Pappé: Os Estados Unidos são o pilar sem o qual esse edifício ruiria ou teria que se reconstruir em outra escala. Desde o pós guerra, mas especialmente após 1967, Israel se converteu em uma espécie de extensão estratégica do poder estadunidense no Oriente Médio, beneficiando se de ajuda militar, diplomática e econômica. No entanto, a relação não é apenas geopolítica, é também teológica e cultural. A direita cristã nos Estados Unidos desenvolveu uma leitura apocalíptica que transforma o Estado de Israel em ferramenta para a concretização de profecias. Assim como o estado da Judeia lê a Bíblia como mapa político, essa direita cristã lê o mapa geopolítico como evidência de realização do plano divino. Quando essas duas visões se encontram, cria se uma aliança em que a defesa de Israel deixa de ser ancorada em argumentos de segurança ou de reparação histórica pelo Holocausto, passando a ser justificativa religiosa, quase litúrgica. Isso gera uma espécie de blindagem moral, porque qualquer crítica ao Estado passa a ser denunciada como ataque ao desígnio de Deus ou, na versão secularizada, como antissemitismo. Ao mesmo tempo, a indústria militar americana se beneficia enormemente dessa parceria, e o Congresso é capturado por lobbies que tratam o financiamento a Israel como dogma. O resultado é um estado da Judeia que se sente livre para agir com extrema violência, porque sabe que terá recursos, armas e veto diplomático às tentativas de responsabilização em instâncias internacionais.

Nexus Geopolítico: O senhor fala com frequência em futura desintegração de Israel. Essa desintegração é inevitável? Em que sentido o senhor a projeta?

Ilan Pappé: Nenhum Estado que se estrutura em torno de um regime de supremacia étnica e nega direitos básicos a milhões de pessoas consegue manter indefinidamente uma aparência de normalidade. A desintegração de que falo não é necessariamente uma explosão instantânea, mas um processo de erosão interna, de crise moral e institucional, de conflitos entre grupos judeus e de crescente ilegitimidade externa. O estado da Judeia acelera isso ao dissolver as últimas amarras que o separavam de um regime abertamente teocrático e segregacionista. A combinação de militarização permanente, expansão de assentamentos, radicalização religiosa e repressão interna, tanto contra palestinos quanto contra judeus críticos, cria tensões que mais cedo ou mais tarde se expressarão em fugas de capitais, em emigração de setores liberais, em fraturas nas forças armadas e em isolamento diplomático. Além disso, a resistência palestina, sob múltiplas formas, e a mudança de opinião pública global corroem a capacidade de Israel de se apresentar como democracia. Não é possível prever a forma exata dessa desintegração, mas o que se pode afirmar é que um sistema baseado em injustiça estrutural está condenado a algum tipo de colapso, seja moral, seja político, seja territorial.

Nexus Geopolítico: O discurso da segurança nacional é constantemente usado para justificar políticas de ocupação e repressão. Como o senhor interpreta esse uso da categoria segurança?

Ilan Pappé: Segurança, em Israel, tornou se uma espécie de vocabulário mágico que abre todas as portas e fecha todas as discussões. Trata se de uma palavra que, na retórica oficial, já não remete a proteção da vida de todos os habitantes, mas à preservação de um regime de privilégio e de controle. Quando um Estado mantém milhões de pessoas sob ocupação, cercadas, sem liberdade de movimento, sem direitos iguais, e chama isso de estrutura de segurança, o que ele está dizendo é que sua segurança depende da insegurança absoluta do outro. Tarifa militar, checkpoints, bombardeios, operações especiais, prisões em massa, assassinatos seletivos, tudo é embrulhado na linguagem da segurança para neutralizar qualquer crítica moral. Essa palavra funciona como escudo discursivo que impede a sociedade israelense de se encarar no espelho e impede também que a comunidade internacional trate Israel como trataria qualquer outro Estado que se comportasse assim. A segurança, nessa lógica, não é objetivo, é instrumento de legitimação da colonização.

Nexus Geopolítico: A crítica ao sionismo costuma ser atacada como antissemitismo. Como o senhor responde a essa tentativa de fusão entre um projeto político e a identidade judaica?

Ilan Pappé: Essa fusão é uma das operações ideológicas mais perigosas de nosso tempo. O sionismo é um movimento político específico, que surgiu em determinado contexto histórico, com determinados líderes, estratégias e escolhas. O judaísmo é uma tradição religiosa, cultural e civilizacional multiforme, que existia muito antes do sionismo e continuará a existir depois dele. Confundir os dois é sequestrar a história judaica e colocá la a serviço de um projeto nacional que oprime outro povo. Quando criticamos o colonialismo francês na Argélia, não estamos atacando os franceses como povo, muito menos o cristianismo. Quando denunciamos o apartheid na África do Sul, não estamos atacando todos os brancos africanos. De modo semelhante, criticar o sionismo e o Estado de Israel como estruturas coloniais não é negar a necessidade de combater o antissemitismo, que continua sendo uma realidade terrível em muitas partes do mundo. Pelo contrário, a ligação automática entre qualquer crítica a Israel e antissemitismo acaba banalizando o próprio conceito de antissemitismo, transformando o em arma para silenciar debates em vez de ferramenta para proteger judeus de ódio real. Em última instância, essa estratégia prejudica tanto palestinos quanto judeus.

Nexus Geopolítico: Para muitos palestinos e analistas internacionais, a solução de dois Estados está morta. O senhor também sustenta que esse modelo não é mais viável. Por quê?

Ilan Pappé: A chamada solução de dois Estados foi durante muito tempo uma espécie de fórmula mágica repetida por diplomatas, governos e instituições internacionais, ainda que o mapa concreto mostrasse sua inviabilidade crescente. Desde 1967, e de modo acelerado após os anos 1990, Israel vem fragmentando a Cisjordânia com assentamentos, estradas exclusivas, muros, zonas militares, áreas industriais. O que restou para um eventual Estado palestino são enclaves desconectados, ilhas cercadas, sem contiguidade territorial, sem controle de fronteiras, de recursos hídricos, de espaço aéreo. Chamar isso de Estado é uma ficção. Além disso, a solução de dois Estados foi frequentemente usada para congelar a discussão sobre direitos, porque pressupunha que só os palestinos sob ocupação seriam sujeitos de negociação, enquanto os palestinos cidadãos de Israel e os refugiados ficariam relegados a uma condição permanente de inferioridade ou exílio. Um horizonte diverso e mais honesto é o de um único Estado democrático, entre o rio e o mar, em que todos os habitantes tenham direitos iguais, sem privilégios legais para um grupo étnico ou religioso. Isso desafia o núcleo da ideia sionista de um Estado judeu majoritário, mas é o único cenário compatível com princípios elementares de justiça.

Nexus Geopolítico: Qual é hoje o papel da comunidade internacional, em particular da Europa e da América Latina, diante do avanço do estado da Judeia?

Ilan Pappé: A Europa tem uma responsabilidade histórica e moral gigantesca, tanto pela perseguição secular aos judeus que culminou no Holocausto quanto pela maneira como exportou a solução de sua culpa para a Palestina. Em teoria, os europeus poderiam ter um papel decisivo para pressionar Israel, mas na prática continuam amarrados a uma combinação de medo de serem acusados de antissemitismo e de interesses geopolíticos. Assim, enviam declarações de preocupação, mas continuam comerciando armas, tecnologias de segurança e bens, além de protegerem Israel em instituições multilaterais. A América Latina, por outro lado, vive um momento distinto. Países que já conheceram ditaduras militares, intervenções externas e políticas de terra arrasada começam a ver nos palestinos um espelho de sua própria história. Isso explica por que governos progressistas latino americanos assumem posições mais firmes, rompem relações diplomáticas, reconhecem o caráter de apartheid e até apoiam iniciativas jurídicas internacionais. O Sul Global como um todo se mostra mais disposto a tratar a questão palestina não como conflito complexo entre duas partes simétricas, mas como caso clássico de colonialismo e segregação. Se essa tendência se consolidar, pode criar se um bloco de pressão que, somado à mudança da opinião pública global, começará a isolar o estado da Judeia.

Nexus Geopolítico: A guerra em Gaza e a intensificação da violência na Cisjordânia mudaram a opinião pública global. Como o senhor vê essa transformação, especialmente entre jovens?

Ilan Pappé: Durante décadas, Israel conseguiu controlar a narrativa internacional com relativa eficiência. Apresentava se como pequena democracia cercada por inimigos bárbaros, lembrava constantemente o Holocausto e explorava os medos ocidentais em relação ao terrorismo para legitimar qualquer ação. O advento das redes sociais e a disseminação de vídeos, testemunhos e imagens em tempo real romperam essa barreira. Jovens em diversas partes do mundo assistem à destruição de bairros inteiros em Gaza, a crianças sob escombros, a colonos armados atacando aldeias na Cisjordânia. Não dependem mais apenas da mediação de jornais tradicionais que muitas vezes repetem a narrativa oficial israelense. Isso produz uma alteração profunda de percepção. Israel já não é visto automaticamente como vítima, mas como potência militar que age impunemente. Nas universidades, nas ruas, em movimentos sociais, a solidariedade à Palestina cresce e se enraíza. Esse é um fator que o estado da Judeia subestima. Pode se bombardear cidades, mas não se pode bombardear a consciência global que vai se formando.

Nexus Geopolítico: O senhor tem enfatizado a cumplicidade de instituições acadêmicas israelenses com a ocupação. Em que medida as universidades participam desse aparato?

Ilan Pappé: Há um mito persistente que apresenta a academia israelense como ilha de liberalismo em um mar de militarização. A realidade é bem menos romântica. Muitas universidades mantêm vínculos orgânicos com as Forças de Defesa de Israel, desenvolvem pesquisa aplicada para a indústria bélica, produzem softwares de vigilância, algoritmos de monitoramento populacional, doutrinas de guerra urbana. Campi se tornaram espaços de recrutamento privilegiado para unidades de elite e a própria estrutura de bolsas e financiamentos está muitas vezes atrelada a programas de inovação militar. Além disso, quando professores ou estudantes tentam organizar debates críticos sobre a Nakba, sobre o boicote, sobre direitos humanos, são frequentemente perseguidos, difamados ou demitidos. É por essa razão que defendo o boicote acadêmico a instituições israelenses, não a indivíduos, como forma de responsabilizar estruturas que se tornaram parte integrante da ocupação, e não observadoras neutras.

Nexus Geopolítico: Israel transformou a Palestina ocupada em laboratório de tecnologias de vigilância. Como isso se insere na lógica do estado da Judeia e na economia global de segurança?

Ilan Pappé: Quando se observa o cotidiano palestino na Cisjordânia e em Gaza, vê se uma combinação de muros físicos, câmeras, torres de observação, drones, sistemas de reconhecimento facial, softwares de predição de riscos. Tudo isso não é apenas controle militar, é também vitrine. Empresas israelenses apresentam seus produtos em feiras internacionais como tecnologias testadas em campo, isto é, experimentadas sobre corpos palestinos. A ocupação se converte em selo de qualidade. Esse modelo transformou Israel em um dos principais exportadores mundiais de soluções de segurança, vendendo para regimes autoritários e democracias formais que desejam controlar suas populações, monitorar migrantes, vigiar opositores. Assim, o estado da Judeia se financia não apenas via apoio dos Estados Unidos, mas também por meio de um lugar privilegiado na economia global da vigilância. Gaza e a Cisjordânia são ao mesmo tempo prisões a céu aberto e laboratórios de inovação repressiva.

Nexus Geopolítico: Em paralelo, Israel mantém relações cada vez mais estreitas com regimes autoritários em diversas regiões. Há uma afinidade estrutural aí?

Ilan Pappé: Israel tem uma longa história de alianças com regimes autoritários, das ditaduras militares latino americanas aos regimes africanos e asiáticos que buscavam armas e treinamento. O que muda com o estado da Judeia é a naturalização absoluta dessa postura. Um Estado que pratica internamente políticas de apartheid e que normaliza a supremacia étnica não tem dificuldades em estabelecer relações profundas com governos que reprimem suas populações, sufocam liberdades civis ou promovem guerras internas. A oferta é clara. Em troca de apoio diplomático, acordos econômicos e parcerias estratégicas, Israel fornece tecnologia, equipamentos, doutrinas de contra insurgência e know how de controle. É uma espécie de internacional da segurança autoritária. Isso reforça o caráter sistêmico da ocupação, que deixa de ser problema local e se integra à arquitetura global de poder.

Nexus Geopolítico: O senhor costuma dizer que Israel não teme tanto a resistência militar palestina quanto a resistência moral. O que significa isso?

Ilan Pappé: Militarmente, Israel é uma potência regional, equipada com armas avançadas, apoio logístico dos Estados Unidos, supremacia aérea e nuclear. Pode esmagar insurreições locais, destruir infraestrutura, impor cercos prolongados. Mas há algo que o exército não consegue aniquilar com tanques e aviões, que é a insistência de um povo em manter sua identidade, sua língua, sua cultura e sua memória. A resistência moral palestina aparece na decisão de permanecer em vilarejos ameaçados, na reconstrução de casas demolidas, na transmissão de histórias da Nakba às novas gerações, no registro de crimes, na produção de arte, literatura e cinema que denunciam a realidade. Essa resistência moral desarma a pretensão israelense de ser o único sujeito legítimo da história nessa terra. Ela inspira solidariedade internacional, alimenta movimentos de boicote, desafia o discurso que tenta igualar colonizador e colonizado. Em longo prazo, essa dimensão moral é mais corrosiva para o estado da Judeia do que qualquer confronto armado, porque expõe o núcleo injusto do sistema.

Nexus Geopolítico: E qual é o papel da diáspora palestina nesse esforço de memória e resistência?

Ilan Pappé: A diáspora palestina é uma extensão vital da Palestina. Milhões de palestinos vivem em campos de refugiados no Líbano, na Síria, na Jordânia, bem como em comunidades espalhadas pela Europa, Américas e outros continentes. Essas pessoas carregam consigo chaves de casas destruídas, documentos, fotografias, canções, receitas, contos. Através de associações, centros culturais, universidades, mídia alternativa, elas constroem uma cartografia da Nakba que não pode ser apagada pelos buldôzeres israelenses. Intelectuais, artistas, jornalistas e ativistas da diáspora produzem parte importante da historiografia palestina contemporânea e mantêm o tema vivo em arenas internacionais. Ao mesmo tempo, a diáspora pressiona governos nos países onde vive, participando de campanhas, audiências parlamentares, iniciativas jurídicas. Em suma, quando Israel tenta silenciar a Palestina dentro das fronteiras controladas, a Palestina reaparece por meio da diáspora como voz global.

Nexus Geopolítico: Olhando para dentro da sociedade israelense, qual é o legado mais devastador que a ocupação deixa para os próprios israelenses?

Ilan Pappé: A ocupação não destrói apenas os palestinos, ela corrói as bases éticas e psicológicas da sociedade israelense. Ao longo de décadas, gerações foram educadas a ver palestinos como ameaça permanente, como massa indistinta associada a terror e violência, de modo que a empatia é desativada. Jovens soldados que servem em checkpoints aprendem a humilhar idosos, a arrancar crianças de suas casas durante incursões, a testemunhar ou participar de atos de brutalidade. Isso não desaparece quando voltam às suas vidas civis. Uma sociedade que normaliza essa violência cotidiana precisa criar mecanismos de autoengano, racionalizações, mitos de pureza moral que a blindem contra a culpa. O resultado é uma cultura política endurecida, paranoica, incapaz de se imaginar coexistindo em igualdade. O estado da Judeia aprofunda essa realidade, transformando essa brutalização em virtude, premiando o radicalismo e o cinismo. Em longo prazo, isso gera um país fragmentado, agressivo, em conflito consigo mesmo.

Nexus Geopolítico: Em meio a essa brutalização, ainda existe espaço para o surgimento de uma liderança israelense capaz de romper com a lógica do estado da Judeia?

Ilan Pappé: A história mostra que lideranças transformadoras costumam emergir em momentos de crise profunda, quando o modelo dominante se esgota e perde legitimidade. No curto prazo, não vejo dentro da elite política israelense alguém disposto e capaz de enfrentar o núcleo do problema, que é a natureza colonial e etnonacional do Estado. Há figuras que falam em reformas, em frear os excessos da extrema direita, em preservar instituições, mas não questionam o apartheid. No entanto, a combinação de pressões internas, como conflitos entre setores seculares e religiosos, e pressões externas, como isolamento diplomático e sanções, pode abrir brechas para novas forças, especialmente se forem acompanhadas de movimentos de base que articulem judeus e palestinos em torno de uma visão de igualdade. Não se trata de otimismo ingênuo, mas de reconhecer que sistemas opressivos frequentemente colapsam em contradições internas que geram atores inesperados.

Nexus Geopolítico: A rivalidade com o Irã é frequentemente usada para justificar a militarização. Como essa relação se encaixa na lógica do estado da Judeia?

Ilan Pappé: O Irã desempenha, na narrativa israelense, o papel de inimigo absoluto, aquele cuja existência e discurso permitiriam ao Estado se ver como bastião da civilização ocidental contra um suposto barbarismo. O programa nuclear iraniano, a retórica de certos líderes, o apoio a movimentos como o Hezbollah são utilizados para construir uma imagem de ameaça existencial que exige vigilância total e alianças permanentes com os Estados Unidos e outros atores. Do ponto de vista do estado da Judeia, o Irã é útil porque justifica a expansão militar israelense, ataques na Síria, operações clandestinas, a manutenção do arsenal nuclear não declarado. Ao mesmo tempo, permite esquivar se das questões centrais da ocupação. Em vez de discutir a igualdade de direitos entre rio e mar, o debate público é sequestrado por cenários apocalípticos de guerra com Teerã. Essa rivalidade, embora tenha componentes geopolíticos reais, é amplificada e instrumentalizada para consolidar o regime interno.

Nexus Geopolítico: A figura de Benjamin Netanyahu ocupa lugar central nesse processo. Como o senhor interpreta sua trajetória dentro da transição para o estado da Judeia?

Ilan Pappé: Netanyahu é, ao mesmo tempo, produto e acelerador desse processo. Ele pertence a uma linhagem política que sempre flertou com o nacionalismo radical e com a ideia de Grande Israel. Ao longo de décadas, aperfeiçoou a retórica do medo, a exploração do trauma do Holocausto, a demonização de adversários internos e externos. Sua habilidade foi vestir esse projeto em linguagem mais sofisticada, conciliando relações com elites econômicas globalizadas, aproximando se de tecnocratas e, ao mesmo tempo, cultivando uma base populista. Quando se viu cercado por processos de corrupção e ameaçado de perda de poder, aprofundou as alianças com os setores mais messiânicos, entregando lhes ministérios chave e legitimando discursos que antes eram marginais. Assim, converteu oportunismo pessoal em motor da transição estrutural para o estado da Judeia. Seu legado não será o de um estadista que buscou paz, mas o de alguém que desmontou freios liberais do sistema e abriu as portas do poder a forças teocráticas.

Nexus Geopolítico: Muitos especialistas usam o termo apartheid para descrever o regime israelense. O senhor concorda com essa comparação?

Ilan Pappé: A comparação com o apartheid sul africano é não só pertinente como necessária, ainda que haja diferenças em contexto e forma. Em ambos os casos há um grupo que detém o poder político e econômico e que estabelece um conjunto de leis, práticas e instituições destinadas a garantir sua supremacia sobre outro grupo. Em Israel e nos territórios ocupados, palestinos vivem sob um regime de múltiplos níveis de cidadania e não cidadania, com diferentes direitos e obrigações dependendo de onde vivem e de que documentos possuem. Existem áreas onde não podem construir, estradas que não podem usar, cidades que lhes são vedadas, tribunais militares para uns e civis para outros, leis de retorno que permitem a um judeu que nunca esteve na região obter cidadania quase automática, enquanto um palestino que tem certidão de nascimento de Jafa ou Haifa não pode regressar. Relatórios de organizações de direitos humanos, inclusive israelenses, documentam isso de forma exaustiva. O estado da Judeia apenas torna mais clara a natureza desse sistema, que já estava em vigor havia décadas.

Nexus Geopolítico: A mídia internacional, em grande parte, ainda reproduz formas de linguagem que suavizam essa realidade. Qual é o papel do jornalismo na manutenção desse sistema?

Ilan Pappé: O jornalismo, especialmente nos grandes veículos ocidentais, teve papel crucial na construção de uma percepção distorcida do conflito. Ao falar constantemente em choques, confrontos, ciclos de violência, sem nomear a ocupação como tal, ele cria a ilusão de que temos dois lados iguais que ocasionalmente se excedem. A escolha de verbos é reveladora. Palestinos morrem, israelenses são mortos. Casas palestinas desabam, prédios israelenses são atacados. Mesmo quando se tenta oferecer um relato equilibrado, muitas vezes a narrativa começa com um foguete, nunca com décadas de cerco. Com o estado da Judeia e a intensificação de crimes, essa linguagem se torna cada vez mais insustentável, e é por isso que vemos parte da imprensa em crise, enfrentando a pressão de leitores e de jornalistas que se recusam a repetir eufemismos. No entanto, ainda há uma estrutura de poder midiático que protege Israel e deslegitima vozes palestinas e críticas.

Nexus Geopolítico: O senhor fala em crise moral israelense. Como essa crise se manifesta no cotidiano e no nível do imaginário coletivo?

Ilan Pappé: Ela se manifesta quando crianças em Gaza são apresentadas como danos colaterais inevitáveis e parte da sociedade reage com indiferença ou mesmo com sarcasmo, quando ministros sugerem bombardeios massivos e são aplaudidos, quando vídeos de soldados destruindo casas ou zombando de prisioneiros circulam como entretenimento. Para que isso seja possível, é necessário um processo de dessensibilização profunda, no qual o sofrimento do outro deixa de ser percebido como sofrimento humano. A crise moral também aparece no silenciamento de vozes dissidentes, no medo de dizer que vidas palestinas importam, na ideia de que qualquer empatia é traição. Uma sociedade que chega a esse ponto vive uma ruptura interna, mesmo que não a reconheça. O estado da Judeia celebra essa ruptura como sinal de pureza ideológica, mas na verdade é sintoma de doença grave.

Nexus Geopolítico: Essa crise também atinge judeus israelenses que se opõem à ocupação. Por que o sistema reage com tanta hostilidade a eles?

Ilan Pappé: Em estruturas autoritárias, dissidentes internos são vistos como ameaça maior do que inimigos externos, porque desestabilizam o consenso e mostram que outra posição é possível. Judeus israelenses que se solidarizam com palestinos, que participam de protestos, que recusam servir em determinadas unidades, que defendem boicotes, são frequentemente demonizados como traidores, agentes estrangeiros, inimigos internos. A repressão assume formas diversas, desde perseguições nas redes, demissões, processos administrativos em universidades, até vigilância e violência policial. A lógica do estado da Judeia exige unanimidade ou pelo menos a aparência de unanimidade. Não há espaço para uma esquerda judaica que questione as bases do regime. E é por isso que muitos acabam deixando o país, o que empobrece ainda mais o campo crítico interno.

Nexus Geopolítico: A memória e o apagamento são temas centrais em sua obra. Como Israel tenta apagar a Palestina e como os palestinos resistem a esse apagamento?

Ilan Pappé: Desde 1948, houve um esforço sistemático para apagar a presença palestina da paisagem e da consciência. Isso incluiu a destruição de centenas de vilarejos, a plantação de florestas sobre ruínas, a renomeação de cidades e rios com nomes hebraicos, a exclusão da Nakba dos currículos escolares, a proibição de celebrações da independência palestina. Mapas escolares em Israel mostravam uma terra quase vazia antes da chegada dos sionistas. Ao mesmo tempo, registros, arquivos e documentos palestinos foram confiscados ou destruídos. No entanto, o apagamento nunca foi completo. Palestinos preservaram nomes de vilas, genealogias, memórias de rotas, histórias familiares. Escritores, poetas, cineastas, fotógrafos reconstruíram fragmentos. Organizações de memória catalogaram vilarejos desaparecidos, coletaram testemunhos de sobreviventes, criaram mapas alternativos. O que vemos hoje é uma luta entre a cartografia oficial e uma cartografia da memória, em que cada oliveira velha, cada parede de pedra, cada ruína se torna testemunha de uma história que o estado da Judeia preferiria esquecer.

Nexus Geopolítico: O que as sociedades ocidentais podem aprender com a luta palestina?

Ilan Pappé: Podem aprender que resistência não é apenas pegar em armas, mas afirmar humanidade sob condições extremas. A capacidade palestina de manter escolas em campos de refugiados, de escrever romances em meio ao exílio, de produzir filmes com recursos mínimos, de organizar comitês populares, de insistir no direito à volta mesmo após gerações, tudo isso mostra que a luta por justiça pode se dar em múltiplas frentes. Em sociedades ocidentais em que muitos já se sentem derrotados diante do avanço de extremismos, desigualdades e vigilância, a experiência palestina é um lembrete de que é possível recusar o cinismo. Há também um ensinamento sobre a centralidade da memória. Quando estruturas poderosas dizem que algo nunca aconteceu, a insistência em lembrar se torna ato político radical.

Nexus Geopolítico: A religião desempenha papel decisivo na consolidação do estado da Judeia. Como se dá essa fusão entre fé e poder?

Ilan Pappé: A instrumentalização da religião não é exclusiva de Israel, mas assume ali forma particularmente intensa. Textos bíblicos que poderiam ser lidos como alegorias, mitos ou relatos simbólicos são convertidos em títulos de propriedade e ordens de guerra. O que deveria ser esfera de busca espiritual se torna manual de políticas públicas. Rabinos que antes atuariam como líderes comunitários passam a ter influência direta em decisões sobre assentamentos, sobre legislação, sobre educação. Crianças são educadas a crer que a geografia política atual é desdobramento direto de promessas divinas milenares e que qualquer concessão territorial não é apenas erro estratégico, mas pecado. Essa fusão reduz a margem para compromissos, negociações e reconhecimento do outro. Quando o estado da Judeia afirma que responde antes a Deus do que a tratados internacionais ou princípios universais, ele se coloca fora do campo de uma ética laica compartilhada e se aproxima de uma lógica de cruzada.

Nexus Geopolítico: Há risco concreto de uma guerra regional grande, envolvendo Líbano, Síria, Irã e possivelmente outros atores, a partir dessa lógica?

Ilan Pappé: O risco sempre existiu e se intensificou. Um Estado dotado de poder militar significativo, convencido de ter mandato divino e acostumado a respostas desproporcionais, tende a ver escaladas como oportunidades e não apenas como perigos. O estado da Judeia considera confrontos em larga escala como momentos que consolidam unidade interna, testam armas, reafirmam hegemonia regional. Ao mesmo tempo, há limites impostos por correlações de forças globais, pelo risco de envolver potências como Estados Unidos e Rússia de maneiras imprevisíveis. Uma guerra aberta com o Hezbollah ou com o Irã seria devastadora para toda a região, mas não pode ser descartada enquanto a lógica messiânica e militarista seguir orientando decisões. Quanto mais Israel se aprofunda nessa lógica, mais instável o Oriente Médio se torna.

Nexus Geopolítico: O senhor foi um dos novos historiadores que revisitaram 1948. Como avalia hoje o impacto desse movimento, inclusive sobre o debate dentro de Israel?

Ilan Pappé: Nos anos 1980 e 1990, quando os novos historiadores começaram a publicar, houve choque em setores da sociedade israelense, porque pela primeira vez documentos oficiais confirmavam o que palestinos diziam há décadas. No entanto, esse movimento teve limites. Alguns colegas procuraram manter equilíbrio, dizendo que embora Israel tivesse cometido crimes, ainda assim teria se defendido, ou relativizando a intencionalidade da limpeza étnica. Minha opção foi ir mais fundo, chamando as coisas pelo nome. Houve uma janela breve em que parecia possível que o reconhecimento de 1948 levasse a uma mudança de consciência. Contudo, a virada à direita e a ascensão do estado da Judeia produziram reação violenta, criminalizando a própria discussão da Nakba. Ainda assim, os livros estão aí, as evidências estão publicadas, pesquisadores e estudantes em todo o mundo se valem desse trabalho. Mesmo que hoje o espaço interno tenha se fechado, o impacto externo é significativo e contribui para o realinhamento da opinião pública global.

Nexus Geopolítico: Nos últimos anos, vimos protestos gigantescos em diversas cidades do mundo em solidariedade à Palestina. Qual é a importância desse movimento transnacional?

Ilan Pappé: Esses protestos revelam a formação de uma consciência global que enxerga na causa palestina algo que vai além da geopolítica regional. Para muitos jovens, sobretudo, trata se do símbolo mais claro do embate entre um sistema que privilegia alguns às custas de outros e a luta por igualdade. As manifestações também pressionam governos, universidades, instituições culturais e empresas a reverem seus vínculos com o regime israelense, seja por meio de boicotes, desinvestimentos ou sanções. Há paralelos evidentes com o movimento internacional contra o apartheid sul africano, embora o contexto seja diferente. Ao verem masse humanas nas ruas de Londres, Joanesburgo, São Paulo, Nova York, Ramallah, Gaza, os dirigentes do estado da Judeia entendem que não controlam mais a narrativa. Essa dimensão simbólica é fundamental para alterar correlações de forças a longo prazo.

Nexus Geopolítico: Em termos jurídicos, ainda faz sentido apostar no direito internacional, em cortes como o Tribunal Internacional de Justiça ou o Tribunal Penal Internacional?

Ilan Pappé: O direito internacional sempre foi seletivo, aplicado de modo rigoroso aos fracos e de forma flexível aos aliados das grandes potências. A Palestina é exemplo disso. Resoluções se acumulam sem serem cumpridas. No entanto, abrir mão desse campo seria entregar aos opressores mais uma ferramenta. Ao levar casos a tribunais internacionais, países e organizações criam registros, acumulam provas, forçam juízes e promotores a se posicionar. Mesmo quando penas não podem ser executadas de imediato, as decisões alimentam campanhas de deslegitimação, ajudam a construir narrativas de responsabilidade e preparam o terreno para futuras medidas. O direito internacional não é panaceia, mas é uma arena demais importante para ser abandonada. Ele se torna ainda mais potente quando combinado com pressão social, econômica e política.

Nexus Geopolítico: O que o surpreende mais na crise atual, se observarmos a trajetória israelense desde 1948 até hoje?

Ilan Pappé: Talvez o que mais impressione é a rapidez com que a máscara caiu. Por muito tempo, Israel conseguiu se vender como democracia liberal com pequenos problemas de segurança. Nos últimos anos, e em especial com a ascensão do estado da Judeia, o discurso e a prática se alinharam de modo brutal. Ministros falam publicamente em expulsão, em destruição, em vingança. Projetos de lei explicitam hierarquias entre cidadãos judeus e não judeus. A violência em Gaza é televisionada quase em tempo real. E mesmo assim, muitos governos continuam tratando Israel como parceiro normal. Esse contraste entre a transparência do horror e a persistência da cumplicidade internacional é um dado novo e perturbador.

Nexus Geopolítico: A radicalização e a teocratização do Estado levam alguns judeus israelenses, sobretudo seculares, a emigrar. Qual é o significado dessa fuga?

Ilan Pappé: Quando setores da população que antes se viam como beneficiários do sistema começam a sentir que já não têm lugar em seu próprio país, isso é sinal de que algo mudou qualitativamente. Jovens que desejam viver em sociedades menos militarizadas, menos clericais, mais abertas, buscam oportunidades na Europa, na América do Norte, em outros lugares. Intelectuais, artistas, profissionais qualificados deixam Israel porque enxergam um futuro de crises constantes, guerras e fechamento cultural. Essa emigração enfraquece o potencial de resistência interna e, ao mesmo tempo, mostra ao mundo que o estado da Judeia não apenas oprime palestinos, mas também estrangula a vida de muitos judeus que recusam essa lógica. Em termos históricos, isso lembra processos em que elites e classes médias fugiram de regimes que se radicalizavam, deixando para trás estruturas cada vez mais dominadas por forças autoritárias.

Nexus Geopolítico: Pensando mais adiante, o senhor vê possibilidade de uma reconciliação futura entre palestinos e judeus, semelhante a processos como o sul africano?

Ilan Pappé: Reconciliação não é palavra mágica que se pronuncia quando tudo acaba. Ela exige pré condições muito duras. No caso sul africano, só foi possível falar em reconciliação quando o regime de apartheid foi desmantelado, quando houve reconhecimento oficial dos crimes, quando se criaram instâncias como a Comissão da Verdade e Reconciliação, ainda que com limites. Na Palestina, isso exigiria que Israel reconhecesse a Nakba, aceitasse o direito de retorno em alguma forma negociada, desmontasse estruturas de apartheid e aceitasse a igualdade plena entre judeus e palestinos em um mesmo território. Não se trata de algo que possa ser imposto de fora, mas de um processo interno profundo de revisão de identidade. É possível imaginar, a longo prazo, um Estado binacional democrático, com símbolos compartilhados, narrativas múltiplas e estruturas de proteção mútua. Mas isso depende de uma derrota política e moral do estado da Judeia e de uma transição dolorosa que ainda não começou.

Nexus Geopolítico: Em termos práticos, como o senhor imagina o futuro dos palestinos nas próximas décadas?

Ilan Pappé: Vejo três dimensões. A primeira é a resistência cotidiana à ocupação e ao cerco, algo que continuará a se manifestar em formas diversas, desde protestos até formas de autogestão comunitária. A segunda é a luta política em nível internacional, por reconhecimento, por sanções ao regime israelense, por inserção em fóruns globais. A terceira é o desenvolvimento de uma visão interna de futuro que vá além da sobrevivência imediata. Os palestinos terão que debater entre si que tipo de Estado desejam, como organizar uma sociedade plural que inclua também judeus, como lidar com tensões internas, com elites locais, com influências externas. O certo é que, apesar de toda a violência sofrida, não vejo sinais de rendição identitária. A Palestina, como ideia e como comunidade, continua viva. Isso, por si só, é fator decisivo.

Nexus Geopolítico: A educação aparece de forma recorrente como ferramenta de resistência. Qual é o peso da escola e da universidade palestinas nesse contexto?

Ilan Pappé: Em campos de refugiados no Líbano, na Cisjordânia, em Gaza, em cidades dentro de Israel, vemos escolas improvisadas, professores que atravessam checkpoints, crianças que estudam em prédios danificados. A insistência em educar se em meio à destruição é talvez uma das imagens mais fortes da resistência palestina. A universidade, por sua vez, torna se espaço de produção de conhecimento crítico, de organização política, de preservação da língua, da história, da cultura. Mesmo quando são fechadas temporariamente por ordem militar, ou quando professores e estudantes são presos, as universidades voltam a funcionar. Isso mostra que a luta não é apenas por terra, mas por dignidade intelectual. Um povo que se recusa a abrir mão da educação está dizendo ao mundo que não aceita ser reduzido a vítima passiva.

Nexus Geopolítico: O estado da Judeia é por vezes descrito como fenômeno recente, produto da última década. O senhor insiste que ele é desdobramento de longa duração. Pode explicar melhor?

Ilan Pappé: Elementos do que hoje chamamos estado da Judeia estão presentes desde as origens do sionismo, especialmente em correntes religiosas e revisionistas que sempre defenderam a soberania judaica sobre toda a terra entre o Jordão e o mar, e até além. Durante muito tempo, essas correntes foram contidas dentro de um sistema que precisava manter aparência de moderação para dialogar com potências ocidentais, atrair investimentos e evitar boicotes. A ocupação de 1967 deu novo impulso a elas, porque criou espaço físico para a experimentação de assentamentos e para o teste de doutrinas teocráticas. A combinação entre frustração com acordos de paz, ascensão de setores mizrahi marginalizados, falência da esquerda sionista, crises econômicas e influência da direita cristã americana foi empurrando o centro político israelense para a direita. O que vemos hoje é a hegemonia de forças que estavam no subsolo há décadas. O estado da Judeia é menos uma ruptura e mais um desvelar de tendências profundas.

Nexus Geopolítico: Há quem preveja futuras cisões dentro das forças armadas israelenses, entre setores mais seculares e setores mais religiosos e messiânicos. O senhor considera esse cenário plausível?

Ilan Pappé: Sim, considero. O exército israelense foi por muito tempo apresentado como instituição que integrava a sociedade, misturando jovens de diversos grupos e funcionando como espaço de construção de identidade nacional. Com o passar do tempo, no entanto, a composição dessa instituição mudou. O peso de colonos religiosos e de jovens formados em escolas nacional religiosas aumentou significativamente em certas unidades de combate. Ao mesmo tempo, setores seculares, sobretudo das grandes cidades, passaram a se sentir desconfortáveis com o papel do exército na repressão cotidiana e na proteção de assentamentos. Se o estado da Judeia avançar ainda mais sobre as estruturas civis, é provável que conflitos entre oficiais, entre comandos e governo, ou mesmo recusa de ordens injustas, se tornem mais frequentes. Em contextos históricos semelhantes, forças armadas fragmentadas foram sinais de regimes em crise.

Nexus Geopolítico: Como o senhor enxerga o papel de atores como China, Rússia e o bloco dos Brics na reconfiguração do cenário em que o estado da Judeia opera?

Ilan Pappé: A emergência de um mundo mais multipolar, com China e Rússia disputando influência com os Estados Unidos, modifica o ambiente em que Israel sempre se movimentou. Tradicionalmente, Israel contou com apoio quase incondicional de Washington, com pouca necessidade de equilibrar se entre grandes potências. Hoje, a presença chinesa em infraestrutura, comércio e tecnologia no Oriente Médio, bem como as relações de Moscou com Irã, Síria e outros atores, cria uma rede de interesses mais complexa. O bloco dos Brics, com países do Sul Global que se mostram mais sensíveis à causa palestina, tende a tratar Israel com menos deferência automática. Isso não significa que o estado da Judeia perderá de imediato seu principal patrono, mas sugere que ele terá mais dificuldade em se impor como narrativa única em fóruns multilaterais. Quanto mais o sistema internacional se afasta da unipolaridade americana, mais espaço se abre para contestação do regime israelense.

Nexus Geopolítico: Do ponto de vista econômico e social, que impacto prolongar esse estado de guerra e ocupação tem sobre o próprio Israel e sobre a região?

Ilan Pappé: Manter um aparato militar gigantesco, sustentar assentamentos espalhados, investir continuamente em tecnologias de vigilância e guerra, tudo isso tem custo financeiro elevado. Israel conseguiu por muito tempo cobrir parte desses custos com ajuda externa, exportação de tecnologia e dinamismo de certos setores da economia. Mas quanto mais se aprofunda a lógica do estado da Judeia, mais o país afasta investimentos éticos, mais alimenta boicotes, mais se torna destino incerto. Internamente, desigualdades crescem, serviços públicos fora de certas áreas privilegiadas se deterioram, conflitos entre grupos sociais se intensificam. Para a região, prolongar o conflito significa manter rotas comerciais vulneráveis, estimular corridas armamentistas, justifica a militarização de regimes vizinhos e priva milhões de pessoas de estabilidade mínima para desenvolver economias locais. A paz não é apenas questão moral, é condição para qualquer projeto de futuro minimamente racional.

Nexus Geopolítico: Para encerrar, que mensagem o senhor deixaria aos leitores que acompanham esta entrevista e tentam compreender o sentido histórico da emergência do estado da Judeia?

Ilan Pappé: Gostaria de dizer que a questão não é apenas o futuro de Israel ou da Palestina, mas o tipo de mundo que estamos dispostos a aceitar. O estado da Judeia é expressão extrema de uma tendência mais ampla em que Estados se autorizam a suspender direitos fundamentais em nome de segurança, civilização ou identidade. Quando uma parte da comunidade internacional olha para Gaza em ruínas, para aldeias cercadas na Cisjordânia, para discursos de ódio proferidos por ministros, e ainda assim continua a considerar Israel um aliado normal, está dizendo que certos povos podem ser sacrificados sem que isso altere o curso das coisas. Resistir a isso é tarefa que ultrapassa as fronteiras do Oriente Médio. Significa afirmar que nenhuma narrativa religiosa ou nacional tem o direito de negar humanidade a quem quer que seja. A luta palestina é, nesse sentido, uma luta pela possibilidade de um mundo em que as vítimas do século passado não sejam transformadas em opressores do século presente, e em que a memória do sofrimento não seja usada para justificar novas injustiças, mas para impedir que elas se repitam.