Império Caótico
Império Caótico

 

Na Sombra do Império: A Guerra Híbrida Como Método e o Mundo em Estado Permanente de Tensões

 

Nexus Geopolítico, 14/11/2025

 

O século XXI entrou em sua fase adulta com uma característica que poucos ousam reconhecer publicamente, a normalização da guerra híbrida como instrumento cotidiano de política externa dos Estados Unidos. Muito além das operações convencionais do pós-Guerra Fria, o aparato institucional norte-americano adotou técnicas discretas, zonas cinzentas, campanhas coordenadas de manipulação informacional, instrumentalização de crises e uso seletivo de aliados intermediários para atingir objetivos estratégicos sem necessidade de assumir responsabilidades formais. Essa prática, que boa parte da imprensa ocidental insiste em revestir de legitimidade moral, revela na verdade a consolidação de um modelo que se vale de instituições multilaterais, ONGs instrumentalizadas, agentes financeiros, plataformas midiáticas e parcerias militares assimétricas para redesenhar regiões inteiras sem consulta às populações diretamente afetadas. O resultado é um planeta submetido a pressões multidirecionais em que a soberania de países periféricos se torna um detalhe incômodo na engrenagem operacional do chamado “império do caos”.

A expressão, inicialmente trabalhada por analistas independentes e posteriormente adotada por diplomatas russos e acadêmicos críticos, descreve um fenômeno que deixou de ser retórico para se tornar empírico. O império não produz estabilidade, não engendra equações duradouras e não administra conflitos com vocação conciliatória. Ele opera por meio de ruptura, fragmentação, ambiguidade e constante tensionamento das regiões consideradas sensíveis ao seu raio de influência. Os exemplos se acumulam desde a invasão do Iraque em 2003, mas atingem seu auge no caso sírio, onde a estratégia norte-americana oscilou entre o apoio tático a grupos jihadistas, tentativas de derrubar o governo central, ocupação ilegal de áreas ricas em petróleo e cooptação de forças locais para garantir controle indireto de parte do território. A lógica não mudou desde então. Onde há recursos, posições estratégicas ou ganhos geopolíticos de longo prazo, forma-se o ambiente ideal para que Washington atue sem compromisso com quaisquer princípios de reconstrução ou pacificação.

A Síria, desde 2011, transformou-se em laboratório dessa política de decomposição calculada. Sob o discurso de “promover democracia” e “proteger civis”, os Estados Unidos e seus aliados financiaram e armaram grupos insurgentes que, ao ganharem musculatura própria, passaram a integrar a constelação brutal de forças jihadistas na região. Quando esses grupos escaparam ao controle, a estratégia simplesmente mudou de eixo, buscando fragmentar o território em enclaves sob tutela norte-americana ou sob disputa permanente, garantindo que o país jamais retomasse sua integridade institucional e seu papel regional autônomo. A possibilidade concreta de partição da Síria não decorreu de fatores internos, mas da ingerência deliberada de potências externas, sobretudo de Washington, que assumiu para si o direito de interferir em rotas de petróleo, cadeias logísticas e equilíbrios políticos que sustentavam a ordem local havia décadas.

A ocupação ilegal do nordeste sírio, especialmente da região de Deir ez-Zor, expõe com clareza a lógica da guerra híbrida. Enquanto o discurso oficial falava em “suporte às Forças Democráticas Sírias”, o que se garantia na prática era o controle de campos petrolíferos fundamentais para as receitas do Estado sírio. Uma guerra híbrida se faz dessa forma, com a manipulação de discursos humanitários, a cooptação de grupos locais, a instalação de bases improvisadas e o controle indireto de recursos estratégicos sob a sombra de justificativas morais que jamais se sustentam à luz do direito internacional. A Síria continua a pagar o preço de uma engenharia política que desestruturou sua economia, fragmentou sua sociedade e gerou fluxos migratórios de proporções históricas. É um retrato cruel do que se torna um país quando se torna alvo prioritário do império.

O envolvimento de potências regionais, como Turquia, Israel e Arábia Saudita, ampliou ainda mais o caráter caótico do conflito sírio. Entretanto, a engrenagem de fundo foi a estratégia norte-americana de permitir que múltiplos atores disputassem simultaneamente a mesa, mantendo o Estado sírio enfraquecido e impossibilitado de reconstruir sua unidade. Esse modelo, que muitos analistas chamam de “balcanização útil”, interessa diretamente ao Pentágono e ao Departamento de Estado, pois impede que qualquer poder regional se consolide pleno e autônomo. A possível partição formal da Síria, cogitada em diversos think tanks ocidentais, seria apenas a culminação de um processo longamente alimentado por operações clandestinas, campanhas de desinformação e interferências silenciosas.

As tensões globais, entretanto, vão muito além do Oriente Médio. O mundo vive hoje em permanente estado de pré-conflito, alimentado por operações psicológicas, embargos econômicos, pressões diplomáticas, manipulação algorítmica e, sobretudo, narrativas construídas para preparar a opinião pública internacional para cenários de confronto crescente. É dessa forma que se sustenta a ameaça constante de guerras quentes, especialmente nas regiões que desafiam a hegemonia norte-americana. O caso iraniano é exemplar. Ano após ano, os Estados Unidos ensaiam ataques diretos ou indiretos ao Irã, utilizando Israel como ponta de lança e fabricando justificativas sobre “ameaças existenciais” que não se sustentam em dados verificáveis. A guerra híbrida opera pela repetição de discursos alarmistas, pela criação artificial de consensos e pela produção de medo estratégico que legitima mobilizações militares.

O risco de uma guerra quente envolvendo Irã, Israel e Estados Unidos permanece real porque interessa a setores do poder norte-americano manter um adversário permanente no Oriente Médio para justificar bases, gastos militares e controle de rotas energéticas. Nada disso depende da vontade das populações locais, que pouco contam para os formuladores de política externa em Washington. O que se observa é uma engrenagem que precisa de crises, necessita de tensões e se alimenta de instabilidades. A política norte-americana não busca a paz, mas sim a manutenção de uma estrutura estratégica que garanta ao país a capacidade de ditar, arbitrar e rearranjar equilíbrios regionais a seu favor. É nesse contexto que emergem as ameaças de guerra quente, mais como instrumento de pressão do que como objetivo final, ainda que, em determinados momentos, a retórica se torne explosiva o suficiente para gerar riscos reais.

A Venezuela é outro caso em que a guerra híbrida atinge contornos perigosos. Desde 2014, os Estados Unidos intensificaram o uso de sanções econômicas, campanhas de desinformação, tentativas de golpes de Estado e operações clandestinas destinadas a fragilizar o governo venezuelano e, se possível, substituí-lo por uma administração alinhada aos interesses do hemisfério norte. O chamado “dossiê Venezuela” encontra-se em permanente estado de alerta não porque o país represente ameaça militar ou diplomática aos Estados Unidos, mas porque possui as maiores reservas de petróleo do mundo e segue uma política externa autônoma. Quando recursos estratégicos estão em jogo, a soberania do país se torna secundária diante do apetite do império.

As tentativas de desestabilização na Venezuela incluíram episódios grotescos, como a incursão de mercenários norte-americanos pelo litoral de Macuto em maio de 2020, operação clandestina mal planejada conhecida como “Operação Gideon”. O fracasso da incursão expôs o amadorismo e a terceirização das ações, mas serviu para revelar, de forma explícita, como Washington utiliza estruturas paralelas e agentes contratados para executar tarefas que não podem ser assumidas publicamente. A guerra híbrida não recua diante do ridículo. Ela transforma o erro em narrativa, o fracasso em justificativa e a violação da soberania alheia em detalhe administrativo. A Venezuela, mesmo sob pressão intensa, conseguiu evitar a queda completa de seu governo, mas permanece sob ameaça constante de novas operações, bloqueios e instrumentalização de crises internas.

O cerco à Venezuela envolve também a tentativa de provocar as Forças Armadas venezuelanas por meio de incidentes fronteiriços na Colômbia e na Guiana. Washington sabe que um erro tático poderia abrir espaço para manipular a opinião pública internacional e justificar ações militares diretas ou indiretas. A guerra híbrida opera pela armadilha, pelo desgaste e pela exaustão. Ao manter a Venezuela em estado de tensão permanente, o império garante que parte de sua energia política e econômica seja drenada para sobrevivência, impedindo que o país consolide suas capacidades produtivas ou aprofunde alianças regionais.

Os possíveis desdobramentos militares dos Estados Unidos na América Latina não são mera especulação, mas parte de um histórico claro de intervenções diretas e indiretas. Haiti, Panamá, Granada, República Dominicana e as sucessivas tentativas de controle sobre Cuba ao longo do século XX são exemplos que demonstram o padrão de atuação norte-americano no continente. No século XXI, a tática se sofisticou, mas não desapareceu. Hoje, não se trata mais de desembarques militares espetaculares, mas sim de infiltrações discretas, operações de sabotagem, cooptação de lideranças militares e uso intensivo de sanções econômicas que produzem os mesmos efeitos de uma guerra aberta sem provocar desgaste diplomático tão evidente.

Países como Brasil, México e Argentina observam esses movimentos com preocupação, ainda que adotem discursos públicos moderados. Qualquer tentativa norte-americana de ampliar operações militares no continente, mesmo sob pretexto humanitário ou de combate ao narcotráfico, deve ser compreendida como extensão direta da lógica de guerra híbrida. A instrumentalização de crises locais para justificar intervenções é mecanismo conhecido. Basta recordar o uso de relatórios ambíguos e narrativas manipuladas para legitimar a invasão do Panamá em 1989 ou para sustentar o bloqueio institucional contra Cuba por mais de seis décadas.

A América Latina vive hoje uma fase de vulnerabilidade ampliada porque enfrenta simultaneamente crises econômicas, disputas políticas internas e pressões geopolíticas externas. Esse ambiente cria espaço para que Washington proponha supostas “soluções de segurança” que, na prática, significam ampliação de sua presença militar e influência direta sobre políticas domésticas. É nesse contexto que surgem discussões como a criação de “forças multinacionais” para atuar em cenários específicos do Caribe, propostas apresentadas como auxílio, mas que repetem estratégias antigas de ocupação indireta.

A lógica central desse sistema é simples e brutal, a guerra híbrida não precisa vencer batalhas. Ela precisa impedir que países desconectem suas economias e políticas externas dos interesses dos Estados Unidos. Quando um governo demonstra autonomia excessiva, torna-se alvo de campanhas de desestabilização; quando um país se integra à China ou à Rússia, torna-se objeto de atenção estratégica; quando uma liderança regional defende políticas soberanas, torna-se alvo de operações de desgaste. A flexibilidade da guerra híbrida é seu maior trunfo, pois ela pode assumir formas múltiplas e se adaptar em tempo real às necessidades do império.

No ambiente global de hoje, as tensões fabricadas são mais eficazes do que guerras declaradas. Elas desgastam sem destruir completamente, paralisam sem mobilizar massas, legitimam intervenções graduais sem despertar resistência internacional significativa. A normalização desse modelo, entretanto, coloca o mundo diante de um risco crescente, o de que a zona cinzenta da guerra híbrida se transforme, em algum momento, em guerra quente, provocada por erro de cálculo, excesso de confiança ou colapso de mecanismos diplomáticos.

O caso sírio já ofereceu múltiplos momentos de quase-confronto direto entre Estados Unidos e Rússia. O caso iraniano oferece risco ainda maior, dada a aliança entre Teerã e potências regionais como Hezbollah e Ansarullah no Iêmen. Se houver um erro de apreciação no Golfo Pérsico, o potencial de escalada é enorme. Mesmo na América Latina, onde os Estados Unidos ainda se veem como autores legítimos da ordem regional, o acúmulo de tensões pode produzir cenários inesperados, sobretudo se a crise venezuelana coincidir com disputas na Guiana, tensões com a Colômbia e movimentos de reconfiguração militar na Amazônia.

As consequências dessa política global são igualmente graves para os próprios Estados Unidos. Um império que se sustenta na produção permanente de crises se torna refém de sua própria estratégia. Ele precisa renovar, periodicamente, a sensação de ameaça, o clima de insegurança, a percepção de que o mundo depende de sua presença militar e de suas decisões diplomáticas. Isso cria um paradoxo profundo, o império não pode permitir que o mundo se estabilize completamente, pois a estabilidade retiraria sua justificativa existencial. Trata-se de uma lógica perversa que condiciona a política externa à eterna renovação de tensões.

As populações dos países afetados são as primeiras vítimas desse modelo. Sírios, libaneses, palestinos, venezuelanos, iranianos, afegãos e tantos outros vivem há décadas sob a sombra de decisões tomadas a milhares de quilômetros de suas fronteiras. As consequências materiais são devastadoras, destruição de infraestrutura, migrações forçadas, fome, queda de padrões de vida e erosão de instituições nacionais. A guerra híbrida, que muitos analistas descrevem como “limpa” ou “sofisticada”, é na verdade profundamente suja, pois opera sem responsabilidade direta, sem prestação de contas e sem mecanismos claros de reparação.

A normalização desse formato de conflito se apoia em uma mídia ocidental que, em grande medida, atua como legitimadora da narrativa imperial. Termos como “intervenção humanitária”, “alianças pela democracia” e “operações de estabilização” são usados para disfarçar iniciativas que, na prática, buscam alterar equilíbrios regionais de forma unilateral. Ao repetir, sem questionar, os discursos oficiais norte-americanos, parte significativa da imprensa global contribui para a construção de consensos artificiais que mascaram a natureza profundamente desestabilizadora da política externa dos Estados Unidos.

O mundo, entretanto, mudou e não aceita mais com facilidade o papel de audiências passivas. Países do Sul Global, especialmente aqueles historicamente afetados por intervenções diretas ou híbridas, passaram a denunciar publicamente essas práticas. A crítica ao “império do caos” deixou de ser retórica e tornou-se capítulo de documentos diplomáticos, discursos oficiais e análises de organismos independentes. A multipolaridade emergente desafia, de forma crescente, a primazia norte-americana, ainda que Washington continue tentando impor seus termos ao debate internacional.

A guerra híbrida continuará sendo instrumento central do império enquanto houver benefícios a extrair e pouca resistência organizada a enfrentar. No entanto, os efeitos colaterais se acumulam, fragmentando regiões, destruindo economias, enfraquecendo instituições multilaterais e corroendo a credibilidade do sistema internacional. A capacidade humana de absorver crises não é infinita. As sociedades, quando pressionadas além do limite, colapsam ou reagem. A história mostra que nenhum império sustentou indefinidamente uma estratégia de desgaste contínuo sem sofrer, cedo ou tarde, o retorno das forças que colocou em movimento.

O momento global atual é crítico porque conjuga tensões acumuladas, mudanças tecnológicas profundas, reconfigurações econômicas e disputas regionais em ebulição. É nesse cenário que a guerra híbrida se revela não apenas como estratégia imperial, mas como perigo sistêmico. O mundo está próximo do limite em que zonas cinzentas podem se transformar em zonas vermelhas. Países frágeis podem tornar-se epicentros de guerras quentes. Regiões inteiras podem colapsar sob o peso de disputas entre potências. O império do caos opera como se o tabuleiro fosse infinito, mas a história demonstra que nenhuma potência é capaz de controlar a entropia que ela própria produz.

A crítica a esse modelo não é apenas moral ou ideológica. É uma crítica estrutural, baseada no fato de que a sobrevivência coletiva depende de instituições estáveis, diplomacia honesta e respeito às soberanias nacionais. Quando a lógica do caos se transforma em método, a instabilidade deixa de ser exceção e passa a ser regra. E um mundo que normaliza o caos como mecanismo político está sempre a um passo de colapsos maiores, sejam eles políticos, econômicos ou militares. A guerra híbrida representa, nesse sentido, uma ameaça à própria arquitetura internacional. E enquanto Washington insistir em operar sob a sombra dessa lógica, o planeta inteiro continuará refém de tensões que nenhum discurso de democracia, direitos humanos ou segurança coletiva conseguirá justificar.